1 – Porquê?
Já Sócrates questionava a práxis – as ideias e a sua prática – com vista ao aperfeiçoamento do conhecimento e dos próprios seres humanos. Descartes, instituiu a dúvida sistemática, representando o fim da escolástica em que – tal como no neoliberalismo – a dúvida é suspeita, o sistema apenas permite “comentadores” de enunciados tidos como verdades absolutas e universais.
O marxismo estabelece o pertinente e constante questionamento das ideias e da prática para aprofundar o conhecimento sobre a natureza e a sociedade, tomando consciência dos processos económicos e sociais, como forma de agir no sentido da transformação das estruturas sociais necessárias ao progresso no seu âmbito mais lato.
Então porquê a social-democracia (designe-se socialista, trabalhista, social-democrata, etc) não é capaz de aprender nem com a vida nem com a História que o capitalismo, seja colonialista, fascista ou imperialista, expõe?
Porque é da sua natureza constituir-se como alternativa ao marxismo, tornando-se credível ao grande capital, para gerir e controlar o descontentamento popular através de “reformas” em conciliação/conluio com a oligarquia. Reformas que quando de base keynesiana foram úteis para a manutenção do capitalismo, sem contudo anular as contradições inerentes ao sistema.
No início dos anos 1970 colocavam-se perante a social-democracia dois caminhos: ou aprofundar o papel do Estado na economia ou entregar a condução económica ao grande capital travestido de “os mercados”. A segunda opção era o neoliberalismo, desenterrando teorias que tinham dado origem à grande crise de 1929 e 1930, vindas dos princípios do século XX com Ludwig Mises e Frederick Hayek. A social-democracia, cedendo à sua natureza, converteu-se ao neoliberalismo, usando eufemismos como “a terceira via”, “socialismo do século XXI”, etc.
Neste contexto o que podia haver de democracia participativa, designadamente através do sindicalismo na prática social-democrática tradicional, foi abandonado e mesmo combatido, bastando-lhe uma dita “alternância democrática”, forma de fingir que alguma coisa mudaria mantendo-se constantes as políticas de direita e a realidade do poder em conformidade com os interesses da grande coligação das oligarquias transnacionais. São elas que determinam as políticas a seguir sejam internas ou internacionais.
A social-democracia alinhada com o antimarxismo e todas as calúnias que o acompanham, faz disto profissão profissão de fé, com mais um eufemismo: a “democracia liberal”. As direitas nem sequer agradecem e vão tolerando – mal – a social-democracia apesar de todas as suas cedências, mascaradas de “reformas”, que nunca são suficientes na situação de declínio do sistema. Não, de facto a social-democracia é incapaz de aprender nem com os seus erros nem com o que a vida traz à evidência.
Não podemos no entanto esquecer aqueles líderes social-democratas, à sua maneira progressistas e anti-imperialistas, assassinados para que as suas políticas não se concretizassem, como Olof Palm, Aldo Moro, Isaac Rabin, Salvador Allende, entre outros, ou ostracizados como Willy Brand e recentemente Jeremy Corbin.
2 – Neoliberalismo e neofascismo
Em Os sete samurais, diz Akira Kurosava: “na guerra o coletivo protege o individual, o individual destrói o indivíduo”. E esta lição aplica-se ao neoliberalismo, cuja desestruturação social e identitária de exacerbação do individualismo, representa uma guerra social contra as liberdades e direitos do povo trabalhador, o proletariado.
O neoliberalismo estabeleceu “os mercados” como a forma de haver liberdade e prosperidade. Uma "liberdade" que tem como condição retirar o Estado do papel de planeamento e intervenção económica e financeira, tornando incipiente a supervisão do governo pela desregulamentação. A vida desmente totalmente aquelas afirmações tornadas dogmas que os povos têm de seguir, sob pena de se tornarem alvos a abater – tarefa a cargo do imperialismo.
O que o liberalismo mais conseguiu foi que o grande capital gerisse os “mercados” segundo os seus interesses, levando à concentração do capital financeiro e ao domínio monopolista em detrimento dos interesses nacionais e populares. Mas esta "democracia liberal", gerida pela oligarquia e seus políticos, funciona pessimamente, degradando as condições de vida dos trabalhadores.
O neoliberalismo, seja com a linguagem da arruaça que atrai o proletariado que mais foi deixado alienar – com responsabilidades para a esquerda – seja com linguagem elaborada destinada aos seduzidos pelas elites do sistema, não deixa de representar um neofascismo. Tudo o que não encaixe nos seus dogmas é criminalizado como “iliberal”, mesmo que de esquerda haja pouco ou nada, e apresentado como totalitário, antidemocrático, etc. Esta classificação e suas consequências (sanções, conspirações, etc) não deveria merecer qualquer crédito, vindo de quem fomentou e protegeu ditaduras e ditadores da América Latina ao Extremo Oriente. As calunias contra a esquerda associando-a a autoritarismo e totalitarismo – que a social-democracia tomou como suas – desviam a atenção dos perigos do neoliberalismo.
O neofascismo mantém os formalismos da democracia parlamentar, mas procede à perseguição da divulgação das ideias progressistas com processos do macartismo, seja através do controlo dos media, seja da exclusão de funções relevantes económica, social e politicamente. Dificilmente se encontra alguém militantemente progressista lecionando numa universidade, ocupando elevados cargos hierárquicos em empresas ou na função pública.
Quem promova o liberalismo e apoie as ações do imperialismo, tem desde logo condições para ser promovido mediaticamente, ganhar vantagens económicas, ter garantida publicação de seus artigos ou livros, etc. Tudo isto faz parte da corrupção intrínseca ao sistema, mas também das suas contradições e da incapacidade de entender a realidade.
Em Uma orgia de ladrões: Neoliberalismo e seus descontentamentos, Alexander Cockburn e Jeffrey St. Clair, descrevem assim o neoliberalismo: "uma vasta classe criminosa chegou com todo o potencial vicioso na década de 1990: um grupo totalmente vazio dos instintos mais elementares de propriedade social, desprovido de fibra moral, egoísta num grau quase insondável. A escala dos saques? Prodigioso. Essa orgia de roubo, sem paralelo na história do capitalismo, foi tolerada e incentivada ano após ano. Quando Ron Carey levou os camionistas dos EUA e Canadá à vitória em 1997, foi denunciado o potencial "inflacionário" dos salários modestamente melhorados. Mesmo declarado inocente por um júri de seus pares, Carey foi proibido de concorrer numa eleição sindical novamente. É necessário voltar a Marx e Balzac para ter uma noção verdadeiramente vívida dos ricos como elites criminosas, a dissecação da moral e ética dos mais ricos".
3 – A dupla moral da anti-corrupção populista
Bem se pode dizer da dupla moral dos falsos puritanos anti-corrupção o que vem nos Evangelhos: "Porque reparas no argueiro que está na vista do teu irmão e não reparas na trave que está na tua própria vista”. (...) “Fariseus, limpais o exterior do copo e do prato, mas o vosso interior está cheio de rapina e maldade. Insensatos!”, Lucas, 6, 41 e 11, 39.
A corrupção é endémica em capitalismo – em socialismo também há, mas é anti natura. A corrupção é aproveitada pela demagogia populista da direita, porém, com a direita no poder tal deixa de ser motivo de indignação, perdendo-se imbricada noutros temas. Foi o que se passou no tempo do primeiro-ministro Cavaco Silva. Um claro exemplo ocorreu no Brasil, com a exoneração de Dilma Roussef e a prisão de Lula da Silva, para arredar o PT do poder, colocando um reacionário como Bolsonaro que defendeu e justificou as torturas aplicadas aos democratas durante a ditadura militar.
A corrupção como arma política e mediática foi praticamente ignorada nos casos das privatizações (a que o Tribunal de Contas fez referência), das PPP (idem), da fuga aos impostos na venda das barragens, no caso dos submarinos, nas verbas da UE para formação profissional, nas trafulhices de Passos Coelho quanto à discriminação dos seus rendimentos, etc.
Esta dupla moral anti-corrupção, é uma das estratégias do populismo neofascista. O termo populismo vem de Lenine, caracterizando movimentos políticos que se pretendiam interpretes dos interesses do “povo”, ignorando ou contestando a existência de classes sociais com interesses diferenciados, muitas vezes antagónicos. O fascismo referia-se à "nação", mascarando a repressão sobre a defesa dos interesses do "povo trabalhador" e a entrega dos mais importantes sectores económicos à oligarquia monopolista.
O populismo faz apelos anti-corrupção, denuncia casos e pessoas, muitas vezes sem qualquer conteúdo de legalidade, alardeando um puritanismo moralista de que se serve a extrema direita. O populista é o mixordeiro da política disfarçado de justiceiro. Procura manipular os interesses do povo, contra os interesses do povo. Os abusos que eles próprios, amigos e correligionários promovem à socapa, servem para atacar o social e os fundamentos democráticos.
O seu princípio está expresso no entendimento de que direitos sociais estimulam a preguiça e a “subsídio dependência”. Trata-se sobretudo de desacreditar e de precaver políticas de sinal contrário ao neoliberalismo (“iliberais”). Protestam contra “os políticos”, muito pouco ou nada contra as políticas desde que estas se mantenham nos ditames da oligarquia.
Os benefícios fiscais ao grande capital e a extorsão das PPP permanecem intocáveis. A fingida indignação esquece os milhões de euros de banqueiros, gestores e grandes acionistas dos oligopólios que saem para paraísos fiscais. A esta gente não se aplica o “excesso de garantias no trabalho”…
O dinheiro dos ultra-ricos é respeitado com veneração, enquanto o Estado é tratado como inimigo público que rouba os bens dos cidadãos. Promovem o "menos Estado", mas depois exibem indignação pelas deficiências criadas na saúde, educação, funções públicas, etc. Seguem a mais canónica das tradições reacionárias: parecerem revoltados com os problemas do "povo" e os únicos intérpretes das medidas necessárias. Na realidade o seu ideal é fortalecer o sistema oligárquico e anular o sindicalismo de classe, expressão autónoma dos interesses do proletariado.
Fazendo apelos a emoções que bloqueiam o pensamento racional, os políticos do populismo são fabricados por especialistas em promoção de imagem: vendem-nos ao “público” como qualquer outro produto. O populista tem de saber mentir, esconder, atrás de frases da devoção à liberdade e ao povo, o seu desprezo pelos valores sociais e a sua identificação com as elites do dinheiro.
Muitas pessoas são levadas a apoiar a extrema-direita pelo desencadear de emoções sem racionalidade, acabando por se identificar com o conteúdo das diatribes dos falsos puritanos da política, embora desconhecendo totalmente os seus programas. A ascensão da extrema-direita não deixa de ser um paradoxo da política atual: cavalgando o descontentamento causado pelo neoliberalismo e as ações imperialistas tem como objetivo o seu aprofundamento.
4 – Do fim classe operária ao fim das ideologias
A social-democracia assumiu também o objetivo do fim da classe operária através da desindustrialização e com isto a quebra da força do movimento sindical – outro tópico da agenda da globalização e financeirização – transferindo polos industriais para países do chamado terceiro mundo (agora “sul global").
A agenda de globalização neoliberal impulsionada pelos EUA prevaleceu, produzindo novas contradições, desmentindo o argumento de que as ideologias de esquerda e direita já não faziam sentido. Neste contexto, mesmo em países de grande pobreza nem mesmo é permitido aplicar medidas da social-democracia tradicional. Políticas para acabar com a fome e o analfabetismo simplesmente não são toleradas pelo imperialismo e pela oligarquia associada. Contra os projetos de políticas progressistas são mobilizadas e financiadas forças da extrema-direita. Se o capitalismo não fosse um sistema irracional – apesar das elaboradas justificações matemáticas da sua economia – entendiam que a melhoria das condições de vida desses povos era também do interesse dos seus povos. Porém a globalização neoliberal controlada pelos EUA, permanece agravando as contradições globais.
Os mais evidentes resultados do neoliberalismo são o grande aumento da desigualdade social e a degradação das condições de vida da generalidade da população nos países capitalistas.
O relatório Perspectivas Económicas Globais do Banco Mundial prevê que, no final de 2024, o PIB em 92 dos países mais pobres do mundo ficará 6% abaixo do nível esperado na véspera da pandemia. Entre 1995 e 2021, a riqueza do 1% mais rico cresceu astronomicamente, capturando 38% da riqueza global, enquanto os 50% mais pobres "capturaram apenas 2%". Durante o mesmo período, a parcela da riqueza global de propriedade dos 0,1% mais ricos subiu de 7% para 11%. Esta obscena riqueza – em grande parte não tributada – fornece a essa pequena fração da população mundial uma quantidade desproporcional de poder sobre a vida política e a informação e espreme cada vez mais a capacidade dos pobres de sobreviver. [1]
O Relatório mundial sobre a desigualdade mostra como a metade mais pobre da população mundial possui, em paridade de poder de compra, apenas 4 100 dólares por adulto, enquanto os 10% mais ricos possuem 771 300 dólares, cerca de 190 vezes mais riqueza. Os 10% mais ricos absorvem 52% do rendimento mundial, deixando os 50% mais pobres com apenas 8,5%.
5 – Europeístas e atlantistas?
O neoliberalismo atlantista tem o seu espelho nos EUA, 40 milhões de pobres, 27 milhões sem seguro de saúde. Nas notícias, ignora-se tudo isto e o facto de que 11,6 milhões de crianças vivem na pobreza de uma população infantil de 73 milhões. Embora a maior parte dos 62 milhões restantes não vivam sequer com a relativa segurança da classe média. Muitos vivem apenas um pouco acima do nível de pobreza. As “casas préfabricadas” abrigam cerca de 22 milhões de americanos, de acordo com o Manufactured Housing Institute. Com 5,8 mortes por 1000 nascidos vivos, os EUA ocupam a 33ª posição entre 36 países da OCDE.
Nem a social-democracia nem os media ainda se preocuparam em olhar para esta situação e fazer a pergunta socrática do porquê no país mais rico do capitalismo. Assim o europeísmo continua devotadamente a considerar o sonho americano como o estádio último da civilização… oligárquica: a “democracia liberal”.
As estúpidas sanções contra a Rússia mostraram-se desastrosas para a UE. [2] A Rússia simplesmente encontrou outros países China, Índia, Paquistão, etc, que se tornaram maiores parceiros comerciais da Rússia. A China forneceu alternativas financeiras e compensou a saída do sistema bancário SWIFT com prejuízo deste. A exportação de petróleo e gás não diminuiu e o aumento dos preços do petróleo e gás provocado pelos tresloucados do atlantismo imperialista mais que compensou a tal “bomba atómica” das sanções que os media exibiam contra a Rússia.
Dizia-se que “quem não se sente não é filho de boa gente”. A UE também não, depois do “fuck UE” da sra. Nuland em Kiev, da anulação da encomenda de submarinos franceses para a Austrália, passando a ser dos EUA, da Alemanha ser levada à terceira derrota em pouco mais de 100 anos, da UE ter que suportar a emigração que foge do caos provocado pelas intervenções da NATO em África, no Médio Oriente e na Europa do Leste, nem por isso passou a ser menos atlantista.
O descontentamento social está aí a todos os níveis. O sistema tenta controlá-lo sob pressão da russofobia, do medo por um país que tendo derrotado o nazismo é apresentado como invasor dos países vizinhos, escamoteando que, pelo contrário, desde os cavaleiros teutónicos tem sido invadido por forças coligadas do ocidente.
A UE/NATO afunda-se numa crise, defendendo um regime corrupto de padrão neonazista, em que criminosos de guerra como Bandera e outros são promovidos a heróis nacionais e erigidos monumentos, destruindo os alusivos à derrota do nazismo. É espantoso como os media o silenciam. Mas a social-democracia nem assim é capaz de apreender a realidade, ziguezagueando num taticismo que abre a porta aos neofascismos.
Mas não foi só a social-democracia que se perdeu no taticismo, confundindo oportunidade com oportunismo, também partidos marxistas, esqueceram – é uma forma de dizer… – o que Engels disse sobre a participação dos comunistas nos parlamentos burgueses, como forma de conquistar mais liberdade e direitos para os proletários, nunca confundindo que a liberdade enunciada pela burguesia capitalista não significava por si mais liberdade para o proletariado.
Há sem dúvida na social-democracia (pelo menos na referenciada como “centro-esquerda”) forças populares e antifascistas. Por isso torna-se uma prioridade desmontar o carácter neofascista do neoliberalismo por forma a desenvolver um amplo consenso antifascista. Contudo, sem uma análise de base marxista não é dado às pessoas entenderem que o capitalismo destrói o poder democrático do voto quando se elegem políticos que se deixam controlar pela oligarquia.
É necessário consciencializar, esclarecer, combater a perda de noção da realidade que torna as pessoas cativas das estratégias da extrema-direita. Ir aos princípios, aos fundamentos teóricos e fazer perguntas acerca da realidade em que estamos inseridos, de como se vive e do que se pretende para o futuro e como. Compreender as contradições ajuda a desmontar a mentira, a tornar evidente o que é escamoteado. Não são respostas fáceis até porque a social-democracia segue a política de direita, em que se mudam as pessoas, mas mantêm-se as políticas.
Perguntando-se a mestre Aquilino Ribeiro o que era para si o cúmulo da miséria moral – do célebre questionário de Proust – disse então: “é ser um cão tinhoso da plebe, curvar-se perante o rei, beijar o anel do bispo, segurar a espada do nobre e mesmo assim ter medo do inferno”.
Mutatis mutandis, ter medo que a Russia nos venha invadir roubando-nos a liberdade dos "mercados" e acreditar que os EUA é que nos protegem e nos ajudam, eis o “bom povo”, almejado pelo europeísmo e o atlantismo!