A síndrome de Estocolmo euroatlantista e seu tratamento (1)

Daniel Vaz de Carvalho

Cartoon de Komikelx.

1 – Diagnóstico e terapêutica
2 – Acerca de uma economia mista

1 – Diagnóstico e terapêutica

A síndrome de Estocolmo é um desvio psicológico em que a vítima estabelece formas de empatia com o agressor, procurando mesmo a sua amizade. A Europa do ocidente está atacada desta patologia. Vitória Nuland pôde preparar a tomada do poder em Kiev em 2014 por corruptos e neonazis e a guerra que se seguiu, afirmando-se indiferente perante as consequências para a Europa: “fuck UE”; os EUA destruíram o Nord Stream 2, a economia industrial da Europa esfuma-se sem acesso ao gás natural russo a preços acessíveis; a França viu o seu contrato de submarinos nucleares para a Austrália ser cancelado em benefício dos EUA; esta Europa torna-se irrelevante no contexto geopolítico, mas aquelas situações não só foram aceites sem protestar como o seu responsável é considerado um insubstituível aliado! O seu caso é estranho, não se percebendo se está sujeita a suicídio, assassinato ou eutanásia.

O problema é tanto mais grave quanto o doente não reconhece a doença. São de facto anos a fio de propaganda centralizada em cinco ou seis megaempresas, que defendem as teses neoliberais imperialistas. Formataram de tal forma modos de (não) pensar que a maioria das pessoas se tornou incapaz de apreender a realidade e de a confrontar com a propaganda.

Falsas informações e deformações da realidade repetidas “mil vezes” – de que se orgulhava Goebbels – leva a maioria das pessoas a serem incapazes de admitir estar a ver a realidade de forma distorcida. Podemos falar em intoxicação mental, dada a incapacidade de ponderar a consistência e as consequências do que afirmam e não reconhecerem cenários transfigurados nos quais as causas são escamoteadas. A propaganda reacionária procede ainda ao choque emocional que impede o raciocínio crítico e a simples associação de ideias, colocando as pessoas em estado de negação perante evidências ou o mero bom-senso.

O exemplo atual mais flagrante é o da guerra na Ucrânia ter começado com a invasão pela Rússia em fevereiro de 2022. Os propagandistas euro-atlantistas, sentem-se inquietos, escondem o desespero ao verem a impotência da NATO perante o desafio da Rússia. Para eles o mundo era perfeito quando a Rússia e outros países da ex-União Soviética, geridos por liberais comandados de Washington, se afundavam na pobreza e guerras civis e os oligarcas se locupletavam com bens públicos. O mundo era perfeito, quando podiam destruir nações, por “razões humanitárias” e “levar a democracia” ao Iraque, Líbia, Afeganistão, Jugoslávia, ataques que causaram milhões de mortes, baseados em mentiras. Ou implantar em nome do “liberalismo” ditaduras da Argentina e Chile à Indonésia.

Mas isto parou na Síria e tenta sobreviver na atual guerra, que não começou em fevereiro de 2022, mas sim em fevereiro de 2014, após o golpe gerido pela sra. Nuland.

Há quem diga que para haver paz basta um: a Rússia retirar dos territórios que ocupou. É o que se chama ignorância – ou querer que os outros assim vivam – acerca de uma guerra. Devia estar a pensar nas guerras perdidas e nas retiradas dos EUA, no Afeganistão e Vietname, escamoteando que antes existiram negociações.

Para estas pessoas, umas desinformadoras outras desinformadas, os acordos de Minsk garantindo autonomia ao Donbass nunca existiram, apesar dos seus protagonistas ocidentais já terem dito que nunca tiveram a intenção de os cumprir; nem, antes de 2022, ataques e mortes (14 000) no Donbass pela Ucrânia/NATO.

Entretanto, o mundo unipolar dos EUA e seus súbditos europeus esvai-se, a multipolaridade liderada pela China e pela Rússia está em construção podemos dizer acelerada. Um mundo de nações que procuram ser soberanas, definindo livremente as suas opções, sem o policiamento e a arrogância do imperialismo para decidir quais as políticas e “regras” a serem seguidas.

John Bolton, um dos chefes neocon, escreve – desesperado – no The Wall Street Journal que o mundo está a mudar, e não a favor da América. A sua resposta é dobrar a aposta como um jogador compulsivo: elevar gastos militares; retomar testes de bombas nucleares subterrâneas e tornar "a NATO global, convidando Japão, Austrália, Israel e outros, comprometidos com as metas da NATO a juntarem-se". Os EUA devem "excluir" Moscovo e Pequim do Médio Oriente, onde se dá a transformação diplomática mais dramática em décadas”. Quanto à Ucrânia: "Depois da Ucrânia vencer a guerra com a Rússia, devemos ter como objetivo dividir o eixo Rússia-China. A derrota de Moscovo pode derrubar o regime de Putin, podendo então ser possível a fragmentação da Federação Russa, especialmente a leste dos Urais. [1]

Isto mostra o nível de delírio que persiste à volta da NATO. É espantoso a ligeireza com que falam numa derrota da Rússia incapazes de dizer: como? A solução das sanções falhou, os media silenciam-no e as pessoas aparentemente perderam a memória do triunfalismo anterior. O mesmo se passa no campo militar, em que a desinformação copia a propaganda nazi nas fases derradeiras.

Exemplo da grave perturbação psicótica que afeta os dirigentes da UE são as declarações de um tresloucado Borrell, comissário das relações exteriores da UE, disposto a entrar em confronto com a China, um importantíssimo parceiro comercial da UE: “as frotas da UE devem patrulhar o Estreito de Taiwan para reafirmar o empenhamento da Europa na liberdade de navegação nesta área crítica. A UE deve participar ativamente na situação com Taiwan, uma vez que afeta a Europa nos aspetos económicos, comerciais e tecnológicos.” (Intel Slava Z – Telegram 23/04)

A síndrome de Estocolmo reflete-se também na dissociação cognitiva em que ao mesmo tempo que todos pedem apoios do Estado perante as dificuldades, são incapazes de identificar as causas dessas mesmas dificuldades, das crescentes desigualdades, da obscena riqueza de oligarcas e apaniguados.

Que futuro se pode esperar da UE? Em Portugal, a média do crescimento económico anual desde 2000 é da ordem dos 0,8%. A desigualdade salarial nas grande empresas quase duplicou. Em termos reais a remuneração dos gestores subiu 47% em 10 anos, enquanto o salário real dos trabalhadores se reduz. Não há dentro do sistema medidas que possam alterar estas situações, um sistema baseado na insana procura do máximo lucro monopolista e no predomínio do capital fictício.

Não é, porém, pensamento positivo, muito menos marxista, ficar pela apresentação ou denúncia de problemas que a propaganda escamoteia ou distorce, sem apresentar soluções. A principal tarefa que as forças realmente progressistas, enfrentam é estabelecer um sistema económico que termine com o ciclo de intermináveis crises, desigualdades, estagnação económica e pobreza com que o capitalismo confronta a Humanidade.

A Constituição de 1976, apesar de desvirtuada em vários pontos, estabelece uma economia mista, o planeamento económico, o não alinhamento em blocos militares. Nada disto é posto em prática, daqui decorrendo o falhanço dos aspetos económicos e sociais. Quando prometem cumprir a Constituição mentem. Pior, a direita com o PS a alinhar, impedem que a Constituição seja matéria de estudo dos alunos do secundário, por forma a compreender o que o povo alcançou em 1976 e as consequências das alterações.

Seria a base fundamental para inserir os jovens numa vida política participativa e saudável. Mas não, preferem a desinformação ao serviço dos oligarcas e dos ditames da UE e de Washington. Os argumentos para o impedir foram os mesmo com que na Idade Média os crentes eram impedidos de ler a Bíblia: muito complexa para ser divulgada.

Perturba-os a perspetiva socialista inserida na Constituição. Contudo, só o socialismo conseguiu tirar populações inteiras da pobreza e dar a todos condições de vida dignas, saúde e educação, algo que o capitalismo não torna possível. O que os perturba, é a possibilidade das jovens gerações compreenderem que lutar pela paz e pelo socialismo é única saída para a sobrevivência e o progresso da Humanidade.

2 - Uma economia mista

A Constituição determina uma economia mista. Em 1976, os sectores básicos foram vedados à propriedade capitalista. A Constituição foi depois alterada de modo a permitir a entrada de capital nesses sectores, como energia, siderurgia, cimentos, etc. O que se passou faz lembrar o filme “Alien, o oitavo passageiro” – o pequeno ser que se tornou num monstro devorador. Inicialmente os capitalistas diziam apenas querer participar no desenvolvimento do país: “criar riqueza”. Foram investir em novas unidades? Não.

Com o apoio dos media que intoxicavam a opinião pública com prejuízos do Sector Empresarial do Estado, uma escandalosa mentira sustentada nos défices das empresas públicas de transporte dada a sua condição social e falta de dotações por parte do Estado obrigando-as a endividarem-se, a política de direita, procedeu à privatização das empresas públicas lucrativas – processos onde a corrupção não esteve ausente – e fez escandalosos negócios nas Parcerias Público Privadas.

Com o intenso policiamento da burocracia neoliberal da UE, mesmo que o Estado coloque milhões para salvar empresas ou bancos, a gestão tem de ser privada, sem interferência do Estado, destinando-se a preparar a reprivatização. As desconformidades decorrentes desta anómala situação, de que é exemplo a TAP, servem para os media desviarem atenções do essencial.

Ao considerar, de acordo com a Constituição, uma economia mista com componentes públicas e privadas, não se pode deixar de ter em conta o keynesianismo. Keynes tem o privilégio de ser tão detestado como Marx pela teologia neoliberal. Quando Keynes apresentou as suas teses foi acusado pela direita de querer conduzir as sociedades para o socialismo; à esquerda, criticavam-no por apenas querer salvar o capitalismo. Ambos tinham razão, Keynes salvava o capitalismo no curto prazo, mas liquidava-o a longo prazo.

O keynesianismo [2] apresenta um conjunto de medidas de caráter técnico, que podem ser aplicadas tanto com objetivos de direita como progressistas. São estes últimos que nos importam numa economia mista libertando-se do domínio do grande capital e das regras absurdas impostas pela UE.

Para Keynes o desemprego não era originado pelos salários nem pelas "imposições do mercado", mas pela dificuldades de liquidez das empresas e da preferência dos capitalistas por produtos financeiros em vez de investimento produtivo. Mostrou também que numa economia puramente competitiva com salários e preços livremente flexíveis o equilíbrio de pleno emprego não chegaria a existir.

Para Keynes as crises económicas resultavam do facto dos capitalistas poderem investir, mas também poderem aumentar a taxa de exploração de forma monopolista e especular em mercados financeiros, bloqueando a economia produtiva, impedindo a distribuição do rendimento em salários e prestações sociais. A ação do governo iria agir como a “eutanásia da economia rentista”.

Efetivamente, para ultrapassar as crises económicas, Keynes considerava que o governo deveria assumir um papel ativo no aumento da procura agregada (Estado, famílias e empresas) através do investimento público. Claro que para este efeito, é necessário o governo controlar a economia e, portanto, os sectores básicos e estratégicos estarem nacionalizados. Uma ampla socialização do investimento aparece como o único meio para assegurar o crescimento e garantir o emprego, embora não excluindo a cooperação com a iniciativa privada.

A grande preocupação de Keynes não era a inflação, ao contrário do idiótico estatuto do BCE. Limitar a inflação implica limitar o aumento do rendimento nominal dos donos dos fatores de produção e, acrescentemos, da especulação.

Keynes defendeu também o cancelamento geral das dívidas após a Primeira Guerra Mundial. A tentativa de cobrar todas as dívidas poderia destruir o sistema capitalista, sendo função primordial do mercado financeiro proporcionar liquidez à economia produtiva e não aumentar os seus ganhos. Contudo, o que a experiência mostra é que tal só pode ser conseguido se o emissor for estatal e agir segundo um plano económico democrático, sendo condição necessária para o desenvolvimento o país poder controlar a fuga de capitais, evasão fiscal, ganhos ilegais. A livre transferência dos lucros priva o país de recursos necessários para um desenvolvimento económico tendo como objetivo satisfazer as suas necessidades produtivas e sociais.

Relativamente ao comércio internacional e ao sistema monetário, eram preconizadas medidas tendentes a evitar o endividamento dos países e a proporcionar balanças comerciais equilibradas. Keynes compreendia que a deterioração das razões de troca implicaria uma redução do rendimento real dos trabalhadores mesmo com aumento de exportações: o crescimento baseado nas exportações poderia conduzir à manipulação dos salários. Quanto a uma união monetária teria como função primordial compensar os défices das BC, a partir dos excedentes de outros países.

As políticas keynesianas – ou o que delas foi posto em prática – permitiram nos países capitalistas uma relativamente rápida recuperação dos danos da Segunda Guerra Mundial, que as crises não assumissem grande gravidade, que o desemprego se mantivesse num nível relativamente baixo. Permitiram ainda o aumento do nível de vida das populações e instaurar o chamado "Estado Social". Foi o que a social-democracia qualificou de "anos de ouro" do capitalismo. “Anos de ouro” com partidos comunistas e sindicatos fortes e o prestígio da URSS e demais países socialistas.

O reverso da medalha não é contudo tão dourado como fazem crer. Nesses anos, o capitalismo não perdeu o seu carácter imperialista e a rapina colonial e neocolonial prosseguiu com as suas tragédias. A exploração da força de trabalho manteve-se e as cedências ao proletariado deveram-se a duras lutas sindicais. O keynesianismo foi, assim, a política do capitalismo quando a correlação de forças lhe era desfavorável.

A chamada síntese neoclássica eliminou os aspetos progressistas da teoria, transformaram-na numa versão enganadora e desastrosa para os povos. Os sindicatos de classe, grande força reguladora do sistema keynesiano, foram objeto de ataques insistentes para impor o neoliberalismo, designadamente através do divisionismo, pretendendo resolver as contradições do capitalismo pela "melhor redistribuição de riqueza", porém como Marx mostrou, a distribuição do rendimento está intimamente ligada à forma forma social de produção. Para melhorar a primeira, esta última terá de ser alterada.

A passagem do keynesianismo para o neoliberalismo representou um acentuado retrocesso civilizacional. Esta mudança é na realidade uma consequência das fragilidades do keynesianismo: o seu falhanço confirma a justeza do marxismo.

02/Maio/2023

[1] consortiumnews.com/2023/04/17/leaks-spelling-the-end-for-ukraine/
[2] Referências ao keynesianismo segundo Paul Davidson em “John Maynard Keynes”, Actual Editora, 2010

A seguir:   A síndrome de Estocolmo euroatlantista e seu tratamento (2)
- Planeamento
- Não alinhamento em blocos militares

Este artigo encontra-se em resistir.info

03/Mai/23