Crise mundial e reprodução do capital

– Livro de Stavros Tombazos acerca da crise do capitalismo

Daniel Vaz de Carvalho (seleção e notas)

Capa do livro.

A validade de uma teoria, ou antes hipótese cientifica, tem de ser não só confirmada pela sua prática, mas também evidenciar a nulidade e erros de teses opostas. Nas ciências sociais como a economia política esta comprovação exige a sua verificação ao longo do tempo, mostrando como as previsões decorrentes dos seus princípios se mostram corretas.

Neste sentido, Crise Mondiale et Reproduction du Capital[1], livro de Stavros Tombazos[2], traz um importante contributo não só para a compreensão do capitalismo atual, mas também para fundamentar as necessárias respostas ao que propagandistas do sistema expõem constantemente e elucidar as camadas menos esclarecidas que a exploração acrescida é única “solução” de que o sistema se mostra capaz.

Um esclarecimento, absolutamente necessário no atual contexto histórico, em que toma forma uma nova ordem mundial, reforçando-se uma frente de Estados que recusa o atual sistema de crises permanentes conduzido pela hegemonia neoliberal imperialista.

Embora o estudo de Stavros Tombazos (ST) se reporte à crise de 2008-2009, mostra como a atual era uma inevitabilidade do sistema neoliberal. O que vemos é simplesmente a repetição de erros e conceitos que conduzem ao desencadear de novas crises.

Para sobreviver o sistema procurou manter ou não reduzir demasiado tanto o consumo do proletariado como as prestações sociais. O consumo privado manteve-se relativamente estável pela redução da poupança, do endividamento das famílias e do Estado e pela entrada entrada líquida de dinheiro nos países, designadamente para financiar défices de transações correntes. A parte dos salários no PIB na UE tem diminuído desde a imposição do neoliberalismo – mesmo sendo considerados como salários os rendimentos de atividades de gestores empresariais, de importantes agentes do sistema financeiro e de “estrelas” do meio mediático e desportivo, que estão mais próximos de rendimentos rentistas. (p. 56-57)

Foi assim criada uma instabilidade económica, dado que com os salários congelados o endividamento da classe trabalhadora significa que os assalariados gastam uma parte dos seus rendimentos futuros, não podendo aumentar o consumo e não sendo assegurado o crescimento económico.

Stavros Tombazos.

ST, a partir dos esquemas de reprodução do capital enunciados por Marx, mostra que um esquema baseado no crescente endividamento do proletariado não é sustentável. Como ideia geral, um esquema de reprodução do capital não pode perpetuar-se a menos que à oferta de bens corresponda a uma repartição do rendimento que assegure a realização dos valores mercantis. Nas condições atuais uma parte da mais-valia total não é nem investida de forma produtiva nem consumida de forma privada pelos capitalistas, mas é, nomeadamente, entregue aos assalariados sob a forma de crédito. Este esquema em que o serviço de dívida representa um corte dos salários, torna os empréstimos cada vez mais arriscados para os capitalistas. Ou seja, um esquema de reprodução desequilibrado que esgota o seu horizonte temporal desde que a parte dos salários disponíveis diminua a tal ponto que a reprodução da força de trabalho não seja mais compatível com o serviço de dívida. Este sistema não é apenas desequilibrado, mas caótico no sentido em que é incapaz de encontrar um equilíbrio estável. (64-73)

Uma redistribuição dos rendimentos a favor do trabalho assalariado teria um efeito positivo na economia, contudo tal redistribuição iria pôr em causa as relações de força entre capital e trabalho, mais precisamente o domínio do capital-dinheiro e a erosão do poder sindical verificado nas últimas décadas. (73-74)

O DOGMA DA AUTO-REGULAÇÃO

A cada esquema de reprodução específico (modelo de desenvolvimento) corresponde um “modo de regulação”. O neoliberalismo assume de forma errónea, levado à categoria de “dogma religioso”, que os “mercados são capazes de se auto-regularem”. Ou seja, a melhor “regulação” é a desregulamentação institucional e uma supervisão mínima do sistema financeiro. O sistema financeiro desregulado, sendo o calcanhar da Aquiles do sistema económico capitalista atual, não deixa de representar uma dimensão necessária ao esquema de reprodução neoliberal. As “bolhas” financeiras especulativas são absolutamente indispensáveis, criando as condições necessárias ao sistema para, durante um certo tempo, assegurar a sua “reprodução social”. (75-76)

Ora, o endividamento só é sustentável enquanto os mercados financeiros não puserem em causa a capacidade dos compromissos financeiros serem satisfeitos. Se isto ocorrer todo o esquema de reprodução é posto em causa concretizando a fragilidade dos seus fundamentos, dando origem a uma crise. (61)

A venda de produtos financeiros ditos derivados foi uma forma que os bancos consideraram poder evitar o risco associado ao mercado especulativo de títulos ações, empréstimos. O risco era assim repartido por inúmeros investidores. Ao serem criados novos empréstimos baseados em anteriores produtos derivados (hedge founds) o risco não se divide, pelo contrário, segundo o cálculo de probabilidades, aumenta. O capital fictício tornava-se “capital tóxico”. (77-78)

Neste processo as “agências de classificação” (rating) que supostamente deveriam proteger dos riscos financeiros, desempenharam um papel desestabilizador. Mesmo títulos classificados como AAA não eram menos “tóxicos” que os considerados “lixo”, pois as “agências de rating” obtêm lucros pela boa classificação dos títulos. Ao contrário do que é pretendido, não são entidades independentes, mas sim entidades políticas que agem como autoridade de “vigilância e de punição” para que os governos cumpram estritamente a ortodoxia neoliberal. (79)

Hedge fund, cartoon de Edstein.

Os bancos, dada a desregulamentação e a conivência das entidades de supervisão, contornaram as regras colocando produtos financeiros derivados fora do balanço, com uma contabilidade paralela totalmente desregulamentada, em que os Special Purpose Veicules ou Special Purpose Investements, serviram de cobertura jurídica, contribuindo para opacidade do sistema. (81)

Note-se que enquanto a classe capitalista se apropria de uma parte do valor criado pelo proletariado, na especulação os capitalistas ganham uns sobre os outros, não há valor novo criado. O neoliberalismo apresenta os produtos financeiros como tendo uma gestão racional dos riscos pelos seus proprietários. Outro erro metodológico seu que provém de tomar como equivalentes riscos individuais e riscos sociais. O que pode ser uma “gestão racional” do ponto de vista privado pode ser irracional ou mesmo catastrófico para a sociedade. O que também contribui para as crises. (83-85)

Contrariamente à “lei da oferta e da procura”, a alta do preço das ações conduz ao aumento dessa procura e a descida do preço à correspondente redução da procura. Assim, foi possível, em tempo de euforia especulativa, o PIB acrescer 2 ou 3% e o valor fictício dos produtos financeiros 15 ou 20%. Mas quanto mais o capital fictício excede o PIB mais aumenta a opacidade do sistema e o desencadear de uma crise. (90-95)

O pretenso Estado-previdência é cada vez mais desmantelado como único meio para reduzir a “toxicidade” do sistema. Os Estados acabam por intervir para salvar o sistema financeiro e os seus valores fictícios, transferindo na medida do possível o custo para os contribuintes, tornando-se uma questão da luta de classes. Após a crise de 2008 o custo de salvar os bancos e outros intermediários financeiros foi de milhões de milhões de dólares. (93)

Outra característica do período neoliberal é que embora os ganhos de produtividade tenham sido fracos, a produtividade aumentou a um ritmo mais rápido que os salários reais, representando um aumento da exploração da força de trabalho. Alguns aumentos salariais em determinados anos foram logo anulados no período seguinte. (37)

A crise de 2008-2009 não pode ser explicada pela baixa da taxa de lucro. Nos EUA e na UE, a baixa taxa de lucro do final dos anos 1960, foi restaurada pelo neoliberalismo nos anos 1980. Nos EUA, UE e Japão, nenhuma baixa da taxa de lucro se verificou antes de 2008, não podendo explicar a crise de 2009. Em 2010, naqueles três polos de países mais ricos a taxa de lucro estava ao seu maior nível desde 1980.

Para compreender o período neoliberal é portanto essencial ver que a baixa da taxa de lucro não explica a crise, sendo necessário considerar a divergência entre a taxa de lucro e a taxa de acumulação do sector capitalista: existe uma liquidez excessiva à disposição da classe capitalista que investe de forma produtiva uma parte decrescente da mais-valia total. Assim, os lucros do presente não geram investimentos e crescimento económico futuro. (45-53) Perante esta situação, foram exigidos sacrifícios aos trabalhadores, pondo em causa o poder sindical e conquistas sociais já obtidas.

A crise atual não decorre da “lei da tendência à baixa das taxas de lucro”. Embora tenha havido uma ligeira baixa no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, verifica-se uma subida entre 2002 e 2007. As crises atuais tem contudo relação com a queda da taxa de lucro nos anos 1970 e com as políticas neoliberais postas em prática para lhe fazer face, visando modificar a relação de força entre capital e trabalho. Em consequência, o balanço do capitalismo neoliberal, apresenta fracas taxas de acumulação, de crescimento do PIB e de recuperações sempre precárias, à custa de uma continuada expansão das desigualdades. Mesmo países com baixas taxas de desemprego, como os EUA, o RU ou a Irlanda tinham taxas de pobreza mais elevadas, tal como definido pela ONU sobre o desenvolvimento humano. (101- 102)

Depois da grande recessão de 2009 verificaram-se as seguintes tendências: recuperação da taxa de lucro e investimentos em capital fixo inferiores aos de antes da crise. A taxa de acumulação nos EUA e na UE oscilou à volta de 1%, e no Japão próxima de 0%. Quanto à produtividade cresceu a uma taxa extremamente fraca, entre 0 e 1,5% nos EUA e entre 0,5 e 1% na UE. (114)

FACILIDADES QUANTITATIVAS

Para fazer face à crise os bancos centrais injetaram na economia milhões de milhões de dólares. Entre 2007 e o primeiro trimestre de 2017 os ativos dos três principais bancos centrais, EUA, Japão e BCE, passaram de 3 para 13 milhões de milhões de dólares. Na UE os ativos do BCE passaram de 15% para 40% do PIB da zona euro. (115)

A globalização neoliberal criou uma concorrência fiscal entre os Estados que, para atrair capitais, reduzem os impostos sobre o capital aumentando-os sobre o trabalho assalariado. Assim, os capitalistas obtêm recursos que convertem em obrigações do Estado, transformadas em direitos sobre salários futuros. Este sistema disfuncional tem ainda como consequência que o capital-dinheiro se desloca para as atividades mais rentáveis, exigindo taxas de lucro mais elevadas às atividades produtivas. Atividades produtivas consideradas insuficientemente rentáveis são postas de lado e necessidades sociais ficam por satisfazer, como a saúde e a educação. (94-95)

O desenvolvimento do capital financeiro representou, como se sabe, o aumento das desigualdades, não apenas na riqueza material, mas também em todos os aspetos sociais como saúde, esperança de vida, educação, etc. (97) O divórcio entre o aumento da riqueza privada e o progresso social, criou um esquema de reprodução baseado nas desigualdades sociais, contribuindo para o afundamento do próprio sistema. (99)

A crise atual é o resultado duma época em que o crescimento capitalista não é possível sem a regressão social. Uma regressão que pôde ser ofuscada pelas bolhas do sistema financeiro, incluindo a bolha da dívida privada dos países do sul e da Irlanda (do ponto vista económico também um país do sul). Alguma recuperação do salário real nos EUA no final dos anos 1990, levou numerosos economistas a acreditarem numa nova “idade de ouro” do capitalismo. Contudo este afastamento em relação ao esquema neoliberal desapareceu logo que a taxa de lucro apresentou uma ligeira baixa. (113)

O DESASTRE DO EURO

A adoção do euro foi uma ideia terrível. No quadro de livre circulação de bens e capitais, as economias especializaram-se ainda mais nos produtos em que tinham uma vantagem comparativa, ficando as mais fracas reféns de especializações de baixo valor acrescentado e pouco prometedoras para o futuro. Não podendo desvalorizar a moeda, os défices foram reabsorvidos por uma “desvalorização interna” dos salários e dos lucros. (103)

Para estes países os excedentes comerciais da Alemanha, acompanhados da estagnação dos salários reais deste pais, tiveram um duplo impacto negativo sobre as economias do sul, quer pela apreciação do euro quer pela limitação das suas exportações para a Alemanha. (104)

É afirmado que os défices das BC e despesas sociais, criaram uma “bolha” de empréstimos privados aos Estados. Contudo a análise da dívida pública fundada sobre dados estatísticos e não sobre crenças ou fake news revela outra realidade. (105) O autor expõe o caso da Grécia, podemos porém exemplificar a situação de Portugal. Em 2010 a dívida pública era de 94% do PIB, no final da intervenção da troika havia atingido 130%.

A crise bancária foi transformada em crise da dívida soberana quando os mercados financeiros se recusaram a financiar certos governos com taxas de juro normais e quando a própria Alemanha necessitava de fundos para financiar a sua crise bancária em 2008. As medidas postas em prática nos países do sul sob pressão dos países do norte constituíram e constituem a receita para aprofundar a crise e a catástrofe social daí resultante. Desde 2010, são os credores que ditam as políticas económicas a pôr em prática. (107)

As crises nos países do sul da UE refletem as falhas da arquitetura da zona euro. As políticas de austeridade modificaram as relações de força entre os países e criaram condições que não permitem sequer um retorno às taxas de crescimento iniciais, embora relativamente baixas. O Mecanismo Europeu de Estabilidade age como um mecanismo de vigilância das políticas de austeridade. Uma união monetária completa implicaria a mutualização da dívida pública e a transferência de recursos das economias mais avançadas para as menos avançadas. Pelo contrário, a opção foi para políticas de austeridade socialmente destruidoras, permitindo porém aos países dominantes na UE, vantagens económicas a curto prazo e vantagens geopolíticas a longo prazo. (109)

As dividas públicas cujos credores eram entidades privadas foram transformadas em dívidas dos governos através de organismos internacionais, como o FMI ou a troika (BCE, FMI, CE). Uma reestruturação da dívida não foi feita atempadamente dando tempo a que bancos alemães e franceses vendessem as suas obrigações do Estado grego para outros bancos em mercados secundários. Foi assim que em 2012, o sistema bancário cipriota se afundou. (111)

O FIM DO EURO

O alinhamento do BCE com as políticas do FED anuncia o fim do euro, dada a ausência de impactos positivos na economia. Em ambos os casos regista-se uma superprodução estrutural dos valores de troca, dado que a capacidade produtiva ultrapassa a procura solvente. De forma errónea, os bancos centrais tratam este problema estrutural como um problema de liquidez. (106)

A desregulamentação do comércio internacional e dos movimentos de capitais levou à criação de oligopólios mundiais que aumentaram a taxa de exploração da força de trabalho para restabelecer a taxa de lucro. A lógica do curto prazo do capital financeiro impôs-se à lógica de longo prazo do capital produtivo, forçando os trabalhadores a práticas de intensificação do tempo de trabalho ou equivalentes, como trabalho a tempo parcial e “flexibilidade laboral”. A mais-valia assim obtida, não é porém investida de forma produtiva ou consumida pelos capitalistas, procura investimentos não produtivos, transformando-se em capital fictício e em “capital tóxico”. (129-131)

Os bancos centrais ao comprarem títulos de dívida pública nos mercados primários ou secundários impediram a queda do seu valor fictício, mas as obrigações públicas representam simplesmente direitos sobre impostos futuros a serem recebidos pelo Estado. Claro que havia uma alternativa a esta política: anulação de parte da dívida soberana segundo critérios sociais e desvalorização do seu valor fictício. Porém os bancos centrais procederam ao abaixamento das taxas de juro situação que fragilizou ainda mais o sistema financeiro, com a formação de mais “bolhas”. (116-117) Quanto ao aumento das taxas de juro ele leva ao aumento do custo do crédito, sendo de imediato reforçadas as políticas de austeridade. (123-124)

Outra das consequências destrutivas da austeridade para os países economicamente mais frágeis, é a emigração de trabalhadores altamente qualificados, formados através de fundos públicos, para outros países da UE onde podem encontrar melhores condições de vida. (112)

A reprodução neoliberal vai sobrevivendo de maneira precária com apoio das políticas monetárias que simplesmente criam novas “bolhas” de capital fictício. A “droga” desta política monetária tem efeitos perversos, mas a redução da dose teria efeitos mais graves e diretos sobre uma economia capitalista esgotada.

EXPROPRIAÇÃO DO BEM PÚBLICO

O capitalismo encontra-se afinal refém da contradição fundamental descrita por Marx: a incapacidade de oferecer o que a sociedade procura e necessita. (133) O bem público foi expropriado para se tornar uma mercadoria, a educação reduzida a formação profissional, a cultura a telenovelas, a saúde a mercadoria de luxo e a gestão ecológica a declarações destituídas de conteúdo. Vemos novas tecnologias por todo o lado, nas ruas, em casa, no nosso bolso… exceto nos locais onde a produtividade poderia aumentar. (135)

Estamos confrontados com o conflito entre as relações de produção e as forças produtivas, descrito pelo marxismo. A preservação do sistema só é possível pela regressão social. Neste contexto histórico as conquistas democráticas são desmanteladas a favor de uma gestão política burocrática e autoritária. Os próprios valores da civilização moderna estão comprometidos, abrindo-se a porta ao extremismo de movimentos e partidos neonazis e neofascistas. (136)

25/Março/2023

[1] Crise Mondiale et Reproduction du Capital, ed. Syllepse e Page2, Paris, 2020, 148 p.
[2] Professor de economia política e filosofia política da Universidade de Chipre.

Este artigo encontra-se em resistir.info

27/Mar/23