por Daniel Vaz de Carvalho
1
Totalitarismo foi um termo criado em Itália por
G. Amendola
, um antifascista, mas adotado pelos fascistas para descrever o seu
próprio sistema. Na segunda metade do século XX, o termo foi
reinventado para denegrir e diabolizar o socialismo e de uma forma geral todos
os sistemas políticos que se afastem do que é determinado pelo
imperialismo.
Totalitarismo define-se comummente como: "toda a organização
estatal cujo regime político não seja de carácter
democrático ou liberal, isto é, em que o governo não
é eleito democraticamente e onde não se admite o exercício
de certas liberdades fundamentais". Note-se que nas "certas
liberdades fundamentais" é condição
sine qua non
a liberdade para a "iniciativa privada", eufemismo para o grande
capital transnacional e monopolista proceder como melhor lhe convier.
Outras definições referem sistemas em que o Estado exerce um
elevado grau de controle na vida pública e privada dos cidadãos,
que proíbem partidos de oposição, recorrendo a campanhas
de propaganda difundidas por meios de comunicação de massa
detidos pelo Estado.
A parcialidade destas definições é evidente. Se a esfera
privada detiver os "meios de comunicação em massa" e
controlar a vida pública dos cidadãos (e privada por
intermédio do Estado ao seu serviço) já não
será totalitarismo.
Aquelas definições servem para justificar o apoio às
agressões, ingerências e crimes, cometidos pelo capitalismo
transnacional, o imperialismo e seus agentes. Os crimes cometidos pelas
ditaduras na América Latina, Ásia (Indonésia, Vietname e
Laos antes da libertação) por governos fascistas como em
Israel, Colômbia, Ucrânia, para só referirmos a atualidade,
ou são escamoteados ou relativizados colocando no mesmo plano agressores
e agredidos.
Definições que consideram totalitarismo sistemas em que
"todas" as atividades sociais são dominadas pelo o Estado,
visam deturpar os princípios do socialismo colocando-o no
descrédito, na ignomínia de totalitário. São
definições instrumentais, destinadas a diabolizar sistemas que a
oligarquia não domina.
O totalitarismo é também utilizado pelo imperialismo e a
oligarquia para imporem como sistema universal e "fim da
História" (!) a "democracia liberal". Substituem a
discussão sobre os sistemas políticos à sua forma, em vez
dos conteúdos, dos métodos e finalidades. Assim, a
discussão perde sentido, já que os fins são estabelecidos
como postulados pela ideologia e os interesses da classe dominante.
2
No G7, Washington reuniu os principais vassalos para uma união das
"democracias" contra a China. Segundo a propaganda "a
dinâmica internacional é entre o totalitarismo e a democracia e
não há equidistância". Totalitários são
então todos os Estados que se "afastam do modelo liberal", o
único que admitem como democracia, um neoliberalismo totalmente falhado
tanto na teoria como na prática, ou o que vai sendo distorcido à
medida das conveniências da oligarquia.
Na manipulação informativa os eufemismos são regra. As
palavras perdem o sentido estabelecido pelo léxico original. Assim,
concretamente, "modelo liberal" significa capitalismo monopolista
transnacional sob a égide do dólar, e é isto que nos
querem convencer ser o grau máximo e definitivo de
"democracia".
A participação popular no progresso social, a soberania nacional,
enfim formas socialistas ou socializantes de governo, são apontadas como
"totalitarismo". Pelo contrário, ditaduras militares,
fascismos, domínio da extrema-direita, não são
identificados como "totalitários", pois alinham com o
imperialismo e violentamente combatem as lutas populares por
transformações progressistas. Brutal repressão de cariz
fascista passa mesmo por "defender a democracia".
O aparente pluralismo político ou informativo, do "modelo
liberal" não passa de um totalitarismo controlado pela oligarquia
que não admite que os seus interesses sejam minimamente beliscados,
pondo em campo, contra as ideias que não lhes sejam favoráveis,
os seus agentes políticos e mediáticos, mesmo argumentistas de
séries da TV. O resto fica sujeito à censura do chamado
"critério editorial" que a oligarquia domina.
Escandalosas ingerências, sanções, agressões
militares, são insistentemente justificadas nos media, ocorrendo sem que
a generalidade das pessoas tenha a mínima ideia do que realmente se
passa, abrindo caminho à extrema-direita.
Determinadas ONG, não passam de extensões de serviços
secretos, assumindo formas legais, alegadamente defensoras da democracia e
direitos humanos. O seu objetivo é a desestabilização
social e a fabricação de bem pagos "democratas",
dramatizando quaisquer problemas existentes ou ficcionados, anunciando
cataclismos que resultariam de medidas socializantes ou consideradas como tal.
Exemplo da instrumentalização das ONG, já não
falando da
NED
, é a Amnistia Internacional, especialista em silenciar os crimes do
imperialismo, que ignora Julian Assange, e
alterou as suas próprias regras
para voltar a incluir o ativista de extrema-direita Navalny como
"prisioneiro de consciência" (na realidade condenado por
corrupção).
A
CIA controla
os principais media dos EUA desde 1950. Os media não fornecem
notícias, fornecem explicações de acordo com a oligarquia,
garantindo que informações reais não interferem nos seus
objetivos. O livro
Jornalistas comprados
(
Gekaufte Journalisten
,
Presstitutes Embedded in the Pay of the CIA
) do jornalista alemão Udo Ulfkotte mostra que a CIA também
controla a imprensa europeia.
3
Marx referiu-se ao "cretinismo parlamentar, a forma não de dar
expressão à vontade do povo, mas de bloquear essa vontade".
Um parlamentarismo alheado do povo, reduzindo a democracia a uma
retórica por representantes que renegam praticamente tudo o que prometem
antes de eleitos.
Na "democracia liberal" não é problema a
existência de vários partidos desde que não ponham em causa
os interesses do grande capital. Os programas de governo não se afastam
do que a classe dominante permite, que em última análise decide
sobre as leis laborais, sobre os gastos do Estado, que a finança
controla por via do endividamento público, ou sobre as receitas
atendendo à livre circulação de capitais e paraísos
fiscais. É a mesma partitura, mudando o maestro e a orquestra.
A "democracia liberal" é um efetivo totalitarismo,
disfarçado com vários partidos que não passam de
fações do mesmo partido único neoliberal-imperialista, o
"modelo liberal". O facto de existirem partidos marxistas-leninistas
em alguns países em que a oligarquia não os conseguiu eliminar,
não invalida o quadro anterior: a marginalização
mediática, a calúnia, a distorção histórica,
colocam acrescidas dificuldades à sua expansão junto das massas
populares. Porém, se tal não é conseguido a oligarquia e o
imperialismo fazem uso dos seus processos de ingerência, chantagem
económica e financeira e recorrem à sua tropa de choque: a
extrema-direita.
Mesmo social-democratas minimamente coerentes não são tolerados.
No Reino Unido, J. Corbyn, que queria levar o partido trabalhista para a sua
matriz tradicional ligada ao sindicalismo e com nacionalizações,
foi alvo de uma caluniosa campanha mediática acusando-o de
antissemitismo imagine-se
por ter criticado Israel. Os EUA
são exemplo de como democratas ou republicanos são simplesmente
fações do partido único oligárquico-imperialista.
A social-democracia atinge por vezes o governo. Aparentemente tem o poder por
ter ganho as eleições. Pura ilusão. A oligarquia aceita
alguns compromissos transitórios face à crise económica e
à contestação social que as suas políticas
originam. Mas é uma situação a prazo. Neste processo a
social-democracia enreda-se em tais contradições para agradar
à oligarquia que acaba por preparar o caminho à direita, sendo
desencadeada ampla cobertura mediática com este objetivo.
E como a oligarquia e o imperialismo no "jogo democrático",
não admitem correr riscos que não controlem, se não saem a
bem saem a mal. O processo brasileiro, os golpe de Estado nas Honduras,
Guatemala, Bolívia (silenciados pelos media), são exemplos do que
expomos.
A "democracia liberal" é um "produto" do qual o povo
não é suposto ser parte ativa, sendo quando muito chamado no
período eleitoral a validar a situação vigente tutelada
pela oligarquia. Trata-se de um efetivo totalitarismo, imposto pelas
relações capitalistas de produção. A riqueza
está nas mãos dos oligarcas, os media e sectores
estratégicos sob seu controlo. O proletariado é sujeito a um
constante processo de alienação, em que a cidadania é
vergada (dirão flexibilizada
) às necessidades de
sobrevivência.
Todos os direitos e liberdades políticas do proletariado foram e
são obtidos através de duras lutas, inclusive com
sacrifícios de vidas. O que existe de democracia na "democracia
liberal" resultou de lutas populares que no passado impuseram formas
e constituições democráticas,
subvertidas depois pelos critérios do capitalismo, mantendo
embora certos formalismos democráticos. Formalidades que não
impediram que os detentores da riqueza se transformassem em novos senhores
feudais aos quais quase tudo é permitido em nome dos
"mercados", de "dar confiança aos investidores" ou
dos "riscos sistémicos".
O
financiamento de candidatos
favoráveis aos interesses da oligarquia constitui também um
grave ataque à democracia. As eleições nos EUA são
disto mais um gritante exemplo: em 2016 os bancos despenderam 2 mil
milhões de dólares a favor dos "seus" candidatos. Em
2020 mais de 3 mil milhões.
A
universidade de Princeton
publicou um estudo, evidenciando que os Estados Unidos funcionam muito mais
como uma oligarquia do que como uma democracia. De facto, nos EUA como na UE, a
maioria da população não tem nenhuma ideia que vive em
função de um império que se pretende global e que recorre
se necessário ao fascismo e à guerra para se exercer.
4
O puritanismo é quase sempre uma forma de hipocrisia ou arrogância
fundamentalista. As suas teatrais indignações, com ampla
cobertura mediática, não abrangem nada que possa melindrar a
oligarquia e o imperialismo.
Estes pruridos democráticos caem também pelo apoio ou
silenciamento perante os neofascismos e partidos de extrema-direita, com
glorificação de nazistas, supressão de elementares regras
democráticas, disseminação do racismo e xenofobia. Caem
enfim no alinhamento com a agenda conspirativa e belicista do imperialismo.
Na Colômbia, a repressão abate-se sobre um povo heroico e sofredor
há muito sob um jugo fascista, mas os media escamoteiam os
acontecimentos, a Amnistia Internacional, a Human Riggts Watch ou a UE nunca
classificaram a Colômbia de ditadura, mas
Cuba sim
, de totalitarismo.
[1]
Com o horroroso
Plano Condor
, para derrubar dirigentes progressistas eleitos democraticamente e liquidar
tudo o que tivesse laivos de progresso, a América Latina tornou-se um
antro de prisões, torturas, assassinatos políticos. Procedimentos
análogos foram levados para outros continentes, deixando os seus povos
na pobreza e na opressão.
[2]
Estes países não deixaram de ser considerados do "mundo
livre". Tal como Israel, que despreza resoluções da ONU,
destrói, ocupa e mata o povo palestiniano em constante repressão
e sucessivas guerras de agressão.
Nada disto incomoda os puritanos de democracia. Quando muito, apenas se atrevem
a referi-los com inócuos moralismos e indignações que
não passam de fogos de palha.
São estes os "valores" arrogantemente proclamados, mas que
morrem nos muros para deter mexicanos, em resultado do "comércio
livre" NAFTA, ou nas tragédias dos que fogem do Médio
Oriente ou África em resultado das agressões de países da
NATO.
O puritanismo demo liberal faz do "menos Estado" uma questão
central. Menos Estado mais Estado nada tem que ver com as liberdades e
direitos democráticos. No capitalismo, a ação do Estado
destina-se a assegurar que o poder económico a infraestrutura
social se mantém nas mãos do grande capital.
O poder do Estado não está em exibir ou exercer a força,
está na sua capacidade de unir a sociedade em torno de objetivos e
ideais comuns. O reforço do papel do Estado pode significar e significou
em muitos momentos a forma de libertação das classes mais
oprimidas face aos poderes feudais ou oligárquicos.
Em capitalismo, os direitos e liberdades do povo trabalhador estão
sempre em risco, enquanto a população é mantida numa
atmosfera de alienação e velhas calúnias. O trabalho
semiescravo e o crime organizado coexistem para além de inócuas
ações de combate. Nenhuma destas políticas é
apelidada de "totalitarismo", tal como o não são
ditaduras oligárquicas mascaradas de democracia meramente formal.
A UE na esteira dos seus patronos de Washington, pretende obrigar todo o mundo
a seguir a sua democracia de oligarcas. Contudo a UE basicamente é um
sistema totalitário, estabelecido à margem da vontade popular,
controlado por uma burocracia ao serviço do grande capital. Dotou-se de
mecanismos para se perpetuar através da chantagem financeira,
ameaça de sanções, não permitindo que
eleições ou referendos alterem as regras que asseguram o
domínio das transnacionais e da finança sobre os povos. O
resultado teria de ser, como é: desastroso, caótico.
5
A reação usa o argumento de totalitarismo, segundo os
critérios que previamente definiu para atacar processos de
transformação tendo em vista o socialismo. O Estado socialista
tem de ter autoridade para salvaguardar a soberania, a segurança e os
interesses do Estado, impedindo atos que minem a ordem constitucional e os seus
princípios de democracia participativa.
De acordo com o marxismo, o Estado de classes é uma entidade repressiva.
O socialismo não vai abolir as classes sociais, que coexistem com
contradições resolvidas por processos não
antagónicos, ao contrário do capitalismo. Aliás não
devemos falar em socialismo, mas sim em processos de transição em
que derrubando o poder da oligarquia se dá início à
construção do socialismo.
No socialismo existem também contradições entre as
relações de produção e as forças produtivas
da sociedade, uma vez que o desenvolvimento das relações de
produção atrasa-se em relação ao desenvolvimento
das forças produtivas. Com uma política justa estas
contradições não se tornarão antagónicas e
não se chegará a um conflito entre as relações de
produção e as forças produtivas da sociedade. O caso
será diferente se forem seguidas políticas incorretas.
[3]
Na construção do socialismo, o Estado terá em conta
fatores históricos e sociais preexistentes. No que respeita às
pequenas e médias empresas, produtores individuais e cooperativas
será respeitado o seu estatuto, sendo progressiva e voluntariamente
integrados nas estruturas do planeamento económico.
Claro que é fácil apontar a processos de
transformação socializantes, erros, falhas problemas. Isto
além das imperfeições humanas por duas
razões intimamente ligadas: a resistência dos oligarcas e o
imperialismo. As elites oligárquicas não abandonam os processos
políticos efetivamente totalitários que garantem o seu poder, sem
a luta, sem o esclarecimento militante do proletariado. Quanto ao imperialismo
encarrega-se de proceder a descaradas ingerências, caluniar, financiar
conspirações, recorrer à agressão.
O Estado em nome da defesa da soberania nacional, dos interesses do
proletariado e de todas as camadas não monopolistas, é obrigado a
seguir uma política de vigilância e defesa do carácter
patriótico e progressista da Constituição. Esta
ação, meramente defensiva, é desde logo classificada pelos
os puritanos de uma esquerda social-democrata dita radical e da direita como
totalitarismo.
No socialismo a participação dos cidadãos nos processos
sociais é fundamental. O que as oligarquias mais temem é que a
sua "democracia liberal" seja substituída por formas de
democracia participativa. Sem a participação consciente e ativa
dos cidadãos, a democracia corre o risco de se tornar uma
ficção política e as diatribes parlamentares não
irem além de uma competição por lugares ao serviço
da oligarquia.
Daqui que o esclarecimento militante, seja necessário, opondo-se
à trágica disfuncionalidade de um sistema que terá de ser
substituído: o capitalismo. Em termos democráticos, o
socialismo tem de ser considerado
uma livre opção, concretizada na soberania do Estado e no
aprofundamento da democracia e em todas as suas vertentes: política,
económica, social e cultural.
15/Junho/2021
[1]
rebelion.org/un-paro-que-anuncia-al-nuevo-poder/
[2]
As balas de Washington: Uma história dos golpes e assassinatos da CIA
[3]
Problemas Económicos do Socialismo na URSS, o autor e a obra
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
.