Uma visão, uma estratégia, um plano
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A finalidade do capital não é satisfazer necessidades, mas sim
produzir lucros.
O capital só produz o que pode ser produzido com lucro e na medida em que este pode ser obtido. Marx, O Capital |
1 - Que visão e estratégia
O governo efetuou a
Apresentação do "Plano de Recuperação e Resiliência"
à União Europeia, que compreende os apoios da UE num total para Portugal de 57 900
M de subvenções (cerca de 6 400 M por ano em nove anos)
e 15 700 M de empréstimos.
O Plano, inclui 12 900 M para: Resiliência (apoios sociais,
qualificação e inovação, infraestruturas,
coesão territorial) 7 200 M; Transição
climática (descarbonização dos transportes e
indústria, eficiência energética, economia circular,
produção de hidrogénio) 2 700 M;
Transição digital (escolas, empresas, administração
pública) 3 000 M. A estas verbas acresce o PT 2020 com 12 800
M; o Quadro Financeiro Plurianual e uma verba para desenvolvimento rural
e transição justa, dando um total de 57 900 M.
A utilização destas verbas apoia-se no documento
"Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica 2020-2030)"
, elaborado pelo sr. António Costa e Silva por solicitação
do PS. Pouco destaque mereceu da parte dos media, que dedicam o seu tempo a
discutir pessoas e não políticas e a criticar com toda a
"imparcialidade" as consequências do que antes defendiam como
"não há alternativa".
A "visão" definida no documento, consiste em recuperar a
economia e proteger o emprego no curto prazo, tornar a economia mais
sustentável social, ambiental e economicamente, mais eficiente na
gestão dos recursos, mais digitalizada, mais inovadora, mais capaz de
competir à escala europeia e global.
(68)
É apresentada uma exaustiva listagem de programas a realizar, desde a
produção de bens de equipamento, fabricação de
máquinas, biotecnologias, produção de medicamentos e
dispositivos médicos, capacitação dos centros
tecnológicos e de investigação aplicada, um plano de
investimento para valorizar os recursos minerais estratégicos, alavancar
os setores tradicionais, ordenar o Território, agricultura
ecológica e local, governança florestal, escolas e universidades,
reabilitação de edifícios, atração de
turistas,
etc. Não esquecendo, que "o mar é um ativo
estratégico do país", embora até agora não
parece terem tido êxito a explicar isso em Bruxelas...
São também listados e descritos um conjunto de
clusters:
de engenharia de produtos e sistemas complexos, das indústrias
militares, das energias renováveis e do hidrogénio verde, da
"bioeconomia sustentável", do lítio, do nióbio,
do tântalo e das terras raras; do mar; e ainda "clusters
tecnológicos regionais, (98, 99) etc.
Há de facto, programas para tudo ou quase tudo. Neste aspeto o documento
parece ser mais um breviário, conduzido pelos mistérios da
transição digital e das alterações
climáticas, centrado na "descarbonização" e
na" transição digital", "na maior eficiência
na gestão da energia e dos recursos, adotando modelos de economia
circular, estabelecendo simbioses industriais" (43) na
eletrificação crescente da frota automóvel, maior uso de
transportes públicos e de bicicletas". (56)
Quanto a estratégia, o documento está longe de a apresentar,
sendo antes uma listagem de intenções. Uma estratégia,
define os processos, os meios e as formas da sua intervenção para
atingir os objetivos fixados.
Também não se vislumbra um plano. Um plano, implica a
elaboração de projetos com objetivos específicos
determinando as várias fases do seu desenvolvimento no tempo, detalhe
dos meios necessários, incluindo organogramas. Quem os faz? Quem os
põe em prática e como? Quais as prioridades?
Como nos habituaram desde a entrada para a CEE/UE, com a adesão ao euro,
com a troika e as "reformas estruturais", recorre-se à
terminologia dos "desafios", "apostas",
"oportunidades". Pretende-se resolver os problemas existentes com as
políticas definidas pela UE que em grande parte lhe deram origem
mantidas num conjunto de frases feitas como "as empresas no centro
da economia", alterações climáticas, economia
circular, descarbonização.
Claro que "o homem sonha, a obra acontece", mas é preciso
não tomar os desejos por realidades. Querer "Portugal como
plataforma tecnológica e logística integrada, transformar o
país numa espécie de laboratório para testar
soluções tecnológicas avançadas para o
Século XXI, atraindo investimento externo (28), transformar Portugal
numa "fábrica da Europa" (85) ou criar, em Lisboa, a
Praça Financeira do Mar (102) ou "Portugal como Centro Europeu de
Engenharia", cai-se no reino da fantasia. (83)
Porém, tudo vai parar ao velho e falhado (até considerando a
componente importada das exportações) "exportar mais":
"contrariar as limitações do mercado interno, apostando na
criação de economias de escala, resolvendo o problema da fraca
presença de empresas de dimensão média e grande. (14)
Para a "reconversão industrial" ser
"profunda e consistente" conta-se uma espécie de "soberania industrial europeia"
,
definindo regras de acesso ao mercado europeu em função do
desempenho ambiental dos produtos. (103) Um fantasioso protecionismo que choca
com as regras da OMC e sobretudo com interesses de exportação da
Alemanha.
2 - Que políticas
Para além de se cumprirem as regras da UE não está
definida uma política. Para isso seria necessário definir os
princípios e orientações gerais, base e guia da
planificação das atividades e tomada e decisões. Nada
disto encontramos, nem admira, o que se pretende é que mude alguma coisa
para ficar tudo na mesma. Ou seja: convencer a oligarquia que o que se fizer
é para seu bem.
Contudo, não se sabe qual a política a seguir: "é
importante não nos atermos a tabus e dizer claramente que precisamos de
uma nova síntese criativa entre as diferentes teorias económicas.
Temos que abandonar a ortodoxia de direita e de esquerda e os modelos
dogmáticos." (65) A extrema-direita também o diz...
Recusa-se o keynesianismo dizendo que não é repetível, sem
explicar porquê, e insiste-se num modelo novo e num renascimento da
teoria económica e da teoria política (?!). É espantoso
como com tantos programas não se tenha começado por definir os
seus fundamentos: a economia política em que se baseiam. Talvez tenhamos
um vislumbre, visto que se recusam "as visões liberais extremistas
que conduziram o país à perda de grande parte da sua
indústria (...) e a um certo culto de desprezo pelos recursos
nacionais." (91)
Isto significa que pelo menos se aceitam visões liberais
"moderadas"... "Um Estado com nova natureza, mais interventivo
(...) para acorrer à capitalização das empresas,
favorecendo a criação de condições para a
reconversão das empresas e a reindustrialização do
país (59) encontrando "um equilíbrio virtuoso entre Estado e
Mercado" (60). Mas então onde fica a "concorrência livre
e não falseada" que a UE determina? Digamos que se navega na terra
do nunca...
Pretende-se, claro, reduzir as desigualdades, caso contrário teremos
"um exército crescente de desempregados e crescente instabilidade
social". (61) O que seria, sem dúvida, um problema para os lucros
do capital.
Estamos, pois, na esfera do "repensar" a teoria económica e o
Estado. Mas qual o papel do Estado numa UE controladora e federalista? Com que
soberania para interferir na economia? Exemplo: a não
nacionalização do Novo Banco. Assim, por muita
erudição que se exiba acaba-se por não ir além de
verdades do sr. Lapalisse que de tão genéricas nada significam,
como
Durkheim
salientou em sociologia, e é também disto que se trata.
A oligarquia pode portanto ficar descansada, pois apenas no "curto
prazo" "o Estado terá um papel decisivo no relançamento
da economia e proteção do emprego, impedindo a
estagnação das atividades económicas e dos
serviços, e ajudando na capitalização de empresas e de
famílias em dificuldades." No médio/longo prazo o setor
privado assumirá um papel crucial como motor de mudança e de
investimento, cabendo ao Estado a definição de políticas e
investimento público, (124) além de "estímulos e
subsídios para apoiar a nossa indústria na
transição para a sua digitalização e para uma
produção baixa em carbono e circular." (126) Tudo isto sob
vigilância da CE que "procede à avaliação da
compatibilidade desses auxílios." (137)
Não é preciso "reinventar" nenhuma teoria sobre o
Estado e a economia: trata-se de "colocar as empresas
(eufemismo para capitalistas)
no centro da recuperação da economia, transformando-as no motor
real do crescimento e da criação de riqueza, criando
condições para o aumento da sua competitividade, não
através dos baixos salários, mas da inovação
tecnológica; ajudando-as também na capacidade de se
internacionalizarem e evitarem uma excessiva dependência do mercado
interno." (13)
Estas "boas intenções" fazem por ignorar o que se passa
na "concertação social" com as
confederações patronais contra os aumentos de salário
mínimo e alteração de leis laborais. É a conversa
habitual sempre que se trata de meter dinheiro nos bolsos capitalistas, porque
até para funções de serviço público se
prevê fazerem-se leilões e entregá-los às empresas
privadas. (127) Ficaria a porta aberta para a privatização da
água e não só.
Tudo o que foi desmantelado ou fragilizado pela política de direita,
quer-se reverter com bons conselhos sem tocar nos interesses do grande capital,
pelo contrário criando-lhes "oportunidades". Assim se
recompensam os maus comportamentos, já que os "programas"
revelam más situações na indústria,
serviços, Administração Pública, justiça,
educação, saúde, infraestruturas, etc.
Os epígonos do sistema são hábeis em disfarçar as
insuficiências teóricas e práticas. Depois das "novas
tecnologias", símbolo de ser evoluído, e da sociedade
pós-industrial - a indústria era para os povos atrasados, vieram
mais tarde umas réstias de "reindustrialização",
sol de pouca dura face ao que a finança e a UE impunham.
Políticas de direita que recusam o seu nome, são apresentadas com
a roupagem da nova "pós-modernidade", da
"descarbonização", economia circular,
digitalização e até das impressoras 3D. A robótica
foi em tempos a "primeira prioridade", mas o capital não
precisa destes bem intencionados consultores que se esmeram para salvar o
capitalismo. Conselhos que o capital só segue se estiver interessado e
não pelas ênfases argumentativas.
3 - No mundo das contradições
O documento passa ao lado de uma questão fundamental, a análise
das contradições entre objetivos, recursos materiais e humanos e
circunstâncias as que são controláveis pelo
país e as que não são.
O problema do desemprego que a "digitalização"
criará, sem solução em termos capitalistas, é
ignorado. O que se diz, no exaustivo repositório de sectores "a
desenvolver e investir" pode ser ouvido nos areópagos da CIP ou
debitado pelos gurus do sistema que como lhes compete fazem o responso da
religião do capital e do "atlantismo".
Poderia dizer-se que o "Plano" revela uma contradição
entre o capitalismo financeiro e industrial. Porém, o capital
monopolista está tão imbricado com a finança que essa
contradição só é efetiva ao nível das micro,
pequenas e médias empresas.
O que o capitalismo fez e faz por esse mundo fora, deveria liquidar qualquer
ilusão sobre os seus interesses ecológicos.
A realidade é que o capital só adere à
"descarbonização", à "economia
eco-eficiente", à fantasia do "green mining" (47), se
isso lhe der lucro, via "incentivos" do Estado e propaganda sem
contraditório para fomentar mercados.
Mais uma vez, o que se pretende é fazer o papel de "bons
alunos" da UE. Os investimentos serão de acordo com o que a
burocracia da UE já determinou e que o "Plano" procura
rigorosamente cumprir, como se as prioridades de Portugal fossem as da
Alemanha, Áustria, Holanda, etc.
Contudo, a presidente da CE deixou claro quais os reais objetivos da UE: com o
argumento de "eliminar entraves ao mercado único" e a
"transição digital e ecológica", pretende-se
concretizar a expansão sem entraves do grande capital das principais
potências, absorvendo sectores ainda públicos e centralizar ainda
mais as decisões nos campos económico, financeiro, social,
além do alinhamento imperialista contra a Rússia e a China.
Esquecem-se que vivem noutro século, que a UE está
tecnológica e produtivamente atrasada, militarmente débil,
financeiramente em crise estrutural, socialmente envolvida em
contradições que originam graves conflitos sociais.
Mesmo incentivos às empresas privadas podem ser proibidos pela UE. Tudo
o que possa limitar as transnacionais é contra o "mercado"...
Assim se elimina a defesa da indústria nacional e a enfática
"reindustrialização" do "Plano".
Um Plano lida com realidades, o quê, onde, como, quando e quem. A
quantificação, mesmo como estimativa, de prazos, custos, recursos
necessários não é minimamente abordada, mesmo em termos
comparativos com iniciativas idênticas. Quais as prioridades? Tudo se
resume a ter fé nos capitalistas e na UE.
Cada programa enunciado implica vários projetos com numerosos
intervenientes devidamente qualificados. É necessária a
elaboração de procedimentos, formação, auditorias,
formação de auditores, sem o qual não é
possível garantir eficácia e eficiência. Tudo isto tem
custos, leva tempo, necessita de pessoal motivado. Se a ideia é entregar
o mais possível aos privados, voltamos ao início, quem e como se
controla a sua atividade e as verbas gastas? Nesta solução o
interesse do Estado é ultrapassado por "especialistas" de
entidades privadas, que defendem prioritariamente interesses privados, algo que
pouco preocupa os defensores dos "contribuintes" e do "dinheiro
de todos nós". Isto mesmo ficou claro nas audições
parlamentares sobre as PPP ou sobre as crises na banca.
Fala-se numa administração pública mais qualificada, mais
eficiente e em serviços públicos de qualidade, apostando na
inovação e na modernização administrativa. (133).
Como compatibilizar estes desejos com os salários congelados há
10 anos, a falta de recursos humanos, a desmotivação por baixos
salários inclusivamente para os quadros, formas de gestão
ineficientes.
No fundo trata-se de dar dinheiro ao grande capital: direta ou indiretamente
tudo lá irá parar. Esta
tentativa de reformar o capitalismo ignora como o sistema funciona. A
maximização do lucro monopolista e as regras da UE não
são conciliáveis nem com as necessidades sociais nem com as
intenções dos "programas". O sistema oligárquico
existente não se altera com prédicas e apelos.
Os que se esmeravam a arengar sobre o "deitar dinheiro para cima dos
problemas", quando se tratava do social, entusiasmam-se com os dinheiros
da UE. Lembremos o dinheiro do
quantitative easing
dado sem condições à Banca comercial, atingindo no final
de 2018 um total de 2,6 milhões de milhões de euros, retomado no
final de 2019, pois os problemas financeiros persistiam...
Agora, a "solidariedade europeia" vem condicionada à
aprovação de Bruxelas cuja burocracia "sabe melhor o que
convém para os portugueses" (frase e prática do
salazarismo). O intervencionismo do Estado é limitado pela
vigilância de Bruxelas e Francoforte, a obtenção de moeda
pelos Estados permanece nas mãos da finança. Por fim, a conta do
serviço de dívida não cessará de crescer, porque as
"regras" estão apenas "suspensas".
4 - Como conclusão
A ilusão dos pretensos salvadores do capitalismo é quererem
ultrapassar as contradições e outras consequências
resultantes das leis do seu funcionamento, com procedimentos que se baseiam
nessas mesmas leis. Inútil: é impossível superar
questões teóricas com processos técnicos. Por mais apurada
que seja a tecnologia, não é possível ultrapassar o zero
absoluto, a velocidade da luz ou ter máquinas com rendimentos iguais ou
superiores a 100%.
O desenvolvimento económico e social deve ser analisado como um
processo. Em termos de processos temos de distinguir entre o simples e o
complexo, o fácil e o difícil. O processo de desenvolvimento
é fundamentalmente simples, mas difícil. Difícil porque a
UE é uma estrutura do imperialismo que se pretende global e a oligarquia
transnacional faz por dominar os processos democráticos. Contra isto
há que opor o esclarecimento e a vontade popular.
Ao dizer-se não se ser nem de esquerda nem de direita, pretende-se
somente desmobilizar a esquerda e viabilizar políticas de direita. O
"Plano" apresentado não vai além do neoliberal
"pinga para baixo"
(trickle down)
pelo qual as desigualdades cresceram exponencialmente.
A alternativa a estas políticas está inscrita na
Constituição através do planeamento económico
democrático, que o "Plano" ignora, pretensamente
substituído por um Banco de Fomento, segundo os "bons
exemplos" da Espanha, França, Itália que em 2019 estavam em
estagnação económica há 10 ou 15 anos, 20 no caso
da Itália...
O planeamento só é efetivo se os sectores básicos e
estratégicos forem controlados pelo Estado, caso contrário tem o
mesmo papel que um "mapa de estradas" que o capital seguirá se
e por onde mais lhe interessar.
A base inicial do planeamento é simples: basta olhar para os
défices da BC, aí estão refletidos os défices dos
vários sectores produtivos e tecnológicos, como já o
referia Álvaro Cunhal. Em 2019, o défice da BC de bens atingiu 20
mil milhões de euros mais de três vezes a média
anual de subvenções da UE! 80% daquele total com a Zona
Euro. Mas tal é escamoteado no "Plano" com o sofisma das
"empresas no centro da economia". Por isso, "nem esquerda nem
direita", já que para a esquerda no centro da economia só
podem estar as pessoas e o seu futuro no seu país.
Este seria um Plano de desenvolvimento orientado, não para a
maximização do lucro monopolista, mas para a
maximização das necessidades sociais e, pode dizer-se, visando um
processo de transformações socialistas.