Maravilhas da tecnologia informática
e os seus conhecidos malefícios
por Alexandre Weffort
Passaram 30 anos sobre a apresentação de Yume (Sonhos) do
cineasta Akira Kurosawa, à margem da competição, no
Festival de Cannes de 1990. A memória dos oito sonhos de Kurosawa
impõe-se nestes tempos de pandemia, guiando a reflexão em torno
das questões tecnológicas. Kurosawa louva a vida, perante a
incerteza de uma humanidade que caminha na senda do conflito nuclear, evocando
figuras míticas da cultura nipónica: "Um raio de sol
através da chuva"; "O jardim dos pessegueiros"; "A
tempestade"; "O túnel"; "Corvos"; "Monte
Fuji em chamas"; "O demónio que chora"; e, a finalizar,
"O vilarejo dos moinhos". Neste último quadro, um
ancião explica ao viajante a decisão tomada há muito tempo
pela aldeia de recusar a influência poluidora da tecnologia moderna,
retornando a modos de vida arcaicos em busca de uma sociedade mais limpa e
feliz. O quadro mostra uma procissão fúnebre, o funeral de uma
mulher. Mas, ao invés de um luto carregado, a aldeia escolhe celebrar
antes a existência e o fin@l de uma vida feliz.
Tecnologia informática na pandemia
A pandemia obriga ao confinamento, o confinamento ao uso intensivo das redes
sociais e dos meios de comunicação informatizados. Milhões
de crianças passam a realizar as aprendizagens escolares com recurso
às tecnologias cibernéticas. A internet dá mais um passo
no sentido da cobertura das múltiplas dimensões da vida humana.
Dos objectos tecnológicos (computadores, tablets, smartphones, routers,
etc.) com que se concretiza a internet enquanto ferramenta de
comunicação humana passamos gradualmente para a "internet
das coisas" das coisas transformadas em entes comunicantes (os
veículos, os semáforos, os mais variados aparelhos
domésticos, da televisão à simples lâmpada de
iluminação).
A tecnologia informática cobre paulatinamente todos os espaços,
gestos e hábitos humanos, dominando o modo de realização
das diversas actividades, mesmo daquelas que sempre se realizaram, positiva e
plenamente, sem o recurso a tal tecnologia. A internet torna-se omnipresente e
procura ser omnisciente (traços que merecem reflexão de todos,
presentes nas utopias em que se fundam as diversas formulações
ideológicas, nomeadamente do foro religioso).
Vivendo num casulo electromagnético
Um novo passo da tecnologia informática de uso doméstico aparece
com a proliferação de soluções de rede "wi-fi
mesh". Ou seja, de aparelhos que produzem a sincronização de
"routers" (aquelas caixinhas que distribuem o sinal da internet sem
fios em nossas casas), aparelhos que já vêm dotados de capacidades
de fluxo de dados elevado, proporcionando a passagem do comum padrão
2.4G para o 5G (ou seja, passar de emissões de frequência
rádio da banda dos 2,4 GHz para os 5.1 a 5.8 GHz) e, nessa passagem, ao
recurso a ondas cada vez mais curtas (os aparelhos de cozinha por micro-ondas
utilizam frequentemente 2,54 GHz). E, para reforçar a presença do
sinal de rede, a rede "wi-fi mesh" pode ainda conectar-se à
rede elétrica doméstica, utilizando-a como se fosse uma antena de
reforço da presença do sinal "wi-fi" (ultrapassando
assim as barreiras físicas, como sejam os pisos e as paredes de
betão). Estamos, assim, prontos para a omnipresença da
radiação electromagnética nas nossas vidas. Mas... Isso
será bom?
Referimos já o uso dessa forma de energia para cozinhar alimentos (os
fornos micro-ondas). E conhecemos também uma variedade de artefactos
bélicos, baseados nas micro-ondas, designados genericamente por AED
(armas de energia dirigida). A questão foca-se no termo que qualifica
este tipo de energia - a radiação - e no seu uso indiscriminado
dentro do espaço doméstico. As redes "wi-fi mesh"
transformam a nossa casa literalmente numa antena de radiação
eletromagnética virada para dentro, que nos envolve como um casulo.
Decorrente do confinamento e da prática do teletrabalho, acabamos por
transformar as nossas próprias casas em centros produtores de
radiação, vivendo literalmente dentro deles. Enquanto tal
resultar de uma opção individual, do modo de
fruição lúdica das tecnologias, estaremos num âmbito
restrito do problema, na sua esfera privada. Mas quando essa é a forma
de concretização da "escolaridade obrigatória"
à qual são remetidos milhões de jovens, passamos à
esfera pública e à necessidade de responsabilização
dos decisores políticos.
A 5ª geração de sistemas sem fios o 5G
Assistimos, nos meses percorridos pela pandemia, a situações de
ataques a antenas de transmissão 5G e à teoria destas como
promotoras do surgimento do novo coronavírus. Aquelas antenas que foram
destruídas ou incendiadas transportavam também o sinal de
comunicação noutras frequências (2G, 3G, 4G) utilizadas
para a coordenação dos esforços de combate à
pandemia. E uma parcela da argumentação tratou de focar, como
alvo da crítica, a empresa chinesa Huawei, uma das mais fortes a
nível mundial neste ramo de actividade, envolvida numa verdadeira guerra
comercial polarizada entre a China e os Estados Unidos, embora haja outras
empresas e outros países também a considerar neste âmbito.
A guerra movida pelo governo dos EUA à Huawei tem como finalidade
garantir o monopólio tecnológico e a energia 5G da Huawei
será tão nociva como a da Nokia, da Ericsson, da ZTE ou da
Samsung.
O sistema 5G encontra-se já na fase de implantação
comercial no Reino Unido, em Itália, em Espanha, na Alemanha, na
Áustria, na Finlândia, na Roménia e na Estónia. Em
Portugal, o sistema 5G encontra-se na fase de regulamentação.
Pode ler-se no preâmbulo da Resolução do Conselho de
Ministros n.º 7-A/2020, de 7 de Fevereiro:
"O 5G apresenta características que o tornam um poderoso
instrumento da transição digital. A nova tecnologia de rede que
agora emerge é a geração "gigabits",
estimando-se que permita a transmissão mais rápida de um volume
de dados muito maior (cem vezes superior), de forma praticamente
instantânea (latência cinquenta vezes inferior), bem como a
conexão de muitos mais dispositivos (um milhão de dispositivos
por quilómetro quadrado)". E, no art.° 13°, alínea
c), que compete ao governo: "Desenvolver e publicitar estudos relativos ao
eventual impacto do 5G na saúde pública com o objectivo de dotar
a população de informação rigorosa sobre o
assunto".
Não abona especialmente os cuidados de saúde pública, num
país que realiza conferências de imprensa diárias dedicadas
à pandemia da COVID-19, verificar-se que o estudo do "eventual
impacto do 5G na saúde pública" se deverá fazer com o
objectivo de informar a população, mas em nada interfere na
decisão de se proceder à sua implantação no
território nacional, na rede de ensino e de hospitais públicos.
Na senda das preocupações dominantes, o potencial
económico do sistema 5G sobrepõe-se claramente a qualquer
preocupação relativa à saúde pública. Para a
conclusão ser outra, os estudos deveriam ser feitos antes de se tomar a
decisão de instalar o sistema.
Não há ainda uma relação de causalidade comprovada
entre o 5G e o aparecimento da COVID-19, mas esse dado - não haver
comprovação - não significa que tal não possa
existir. Pode resultar de algo simples: não terem sido promovidos
estudos nesse sentido (pelo menos, em Portugal). Mas devemos acreditar que, em
resultado da resolução citada, quando forem feitos os estudos
pertinentes seremos certamente informados disso (isto é, se os estudos
forem realizados, não esquecendo a forte e directa
vinculação estabelecida hoje entre o meio académico e o
interesse das indústrias).
O paralelo com a Talidomida
Retrocedendo na história, em finais da década de 1950 uma empresa
farmacêutica comercializou um medicamento passível de venda sem
receita médica, dadas as garantias de segurança afirmadas pelo
fabricante, que provocava malformações nos fetos, atingindo mais
de 10 mil crianças. Depois de retirado dos mercados (primeiro, dos
Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha e, depois, de outros países),
continuou a ser comercializado - com outro nome - no Brasil, tardando ainda uns
anos a ser completamente retirado de circulação.
O comportamento da indústria farmacêutica foi, comprovadamente,
com condenações na justiça, criminosamente negligente. O
paralelo coloca-se, desde logo, na afirmação de segurança
do produto para o consumo: razões de mercado fizeram saltar etapas nos
testes requeridos para a colocação no mercado de um determinado
medicamento; o mesmo se aprestam a fazer governos e indústrias
farmacêuticas em relação à vacina para a COVID-19
ou, como fez Donald Trump, acolitamente seguido por Bolsonaro, na
promoção da cloroquina e da hidroxicloroquina como medicamento
adequado àquela doença.
Mas um outro paralelo foi apontado, já há alguns anos, em
relação à tecnologia 5G e à Talidomida: a
possibilidade de, pela potência, comprimento de onda e frequência,
a radiação electromagnética produzida pelos sistemas
"wi-fi" ser potencialmente prejudicial à saúde humana
(e animal, em geral) e interagir com o meio ambiente (inclusivamente, no
comportamento dos processos virais).
Evitando basear este texto em fontes sujeitas a grande polémica,
envoltas na bruma das chamadas "teorias da conspiração"
(como as denúncias protagonizadas por Berrie Trowers - investigador que
sugere o paralelismo entre a tecnologia 5G e a Talidomida - ou o livro de
Severac Claire, "A guerra secreta contra os povos", onde as
questões aqui afloradas são objecto de aprofundamento),
procuremos o olhar de uma fonte mais neutral (face às polémicas
referidas).
Segundo o
INCA
(Instituto Nacional do Câncer)
, do Ministério da Saúde do governo federal do Brasil:
"A radiação não ionizante é uma modalidade de
radiação de baixa frequência e baixa energia, também
denominada de campo eletromagnético, que se propaga através de
uma onda eletromagnética, constituída por um campo
elétrico e um campo magnético, podendo ser provenientes de fontes
naturais e não naturais. Os dois principais subtipos de campos
eletromagnéticos são:
Eletromagnéticos de
frequência extremamente baixa: Ondas de rádio - oriundas da rede
elétrica e dos equipamentos elétricos e eletrônico.
Radiofrequência/micro-ondas:
Telefones celulares e sem fio, antenas de telefonia celular instaladas nos
aparelhos móveis e nas torres, radares e transmissões de
rádio e TV, luz elétrica, torres de transmissão e
distribuição elétrica, fiação
elétrica em construções, equipamentos que emitem
radiação infravermelha, redes Wi-Fi.
(...) A exposição aos campos não ionizantes não
é um fenômeno recente, embora a exposição não
natural tenha aumentado no século XXI em função das
demandas por eletricidade, aprimoramento tecnológico e mudanças
no comportamento social. Quanto maior a intensidade do campo magnético
externo maior a circulação de corrente no interior do corpo
humano. Tanto os campos elétricos como magnéticos podem, quando
suficientemente intensos, produzir estimulação em nervos e
músculos ou afetar outros processos biológicos. As
evidências sugerem que a exposição crônica à
radiação não ionizante de baixa frequência e fontes
de campos eletromagnéticos de frequência extremamente baixa pode
aumentar o risco de câncer (cancro) em crianças e adultos" .
O texto é de teor didático e aborda os mesmos problemas
atrás referidos como sujeitos à pecha de "teoria da
conspiração": a potencial influência negativa para a
saúde decorrente da exposição à
radiação eletromagnética. Problemas de uma temática
conhecida e que, pelo teor da resolução do governo
português já referida, não justificaram maior
investigação ou cuidado (antes de se decidir pela
implantação do sistema 5G no território, nas escolas, nos
hospitais, nas casas que hoje se querem "inteligentes").
Ecologia e ideologia
Pelas boas e pelas más razões, a "internet das coisas"
deixou de ser um tema de interesse exclusivo de especialistas e passou a
integrar o cardápio das temáticas correntes. A discussão
destas questões terá de libertar-se, é certo, da
atribuição preconcebida da etiqueta "teoria da
conspiração" e ser assumida pela sociedade civil nas suas
múltiplas dimensões (filosófica, científica,
ética e técnica, desejavelmente por esta ordem de prioridades).
Foi inversão das prioridades e o abandono do critério
ético que permitiram a existência da Talidomida. O que
acontecerá com as tecnologias da informação? Continuaremos
indefinidamente a fruir ingenuamente da tecnologia como valor autónomo,
desligado das demais esferas da vida, chegando a sobrepor-se mesmo ao
critério prioritário do respeito à vida?
Epílogo
O nono sonho de Kurosawa não chegou a ser filmado. Por razões
orçamentais, a celebração do fim do pesadelo nuclear
não integrou Yume. Nem esse objectivo foi realmente atingido, como
demonstram o desenvolvimento armamentista das grandes potências, seja a
nível nuclear, seja pelo recurso a novas armas onde os sistemas
informáticos (e a chamada "inteligência artificial")
são, cada vez mais, determinantes e onde a velocidade de
comunicação em rede desempenha um papel crucial.
27/Maio/2020
Ver também:
5G, novo campo da corrida aos armamentos
, Manlio Dinucci
Apelo internacional: Parem o 5G na terra e no espaço
O original encontra-se em
https://www.oladooculto.com/noticias.php?id=795
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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