Crítica ao possibilismo & ao movimentismo

Outro mundo é possível.  Qual?

por Octavio Rodríguez Araujo [*]

Eduard Bernstein: 'O movimento é tudo, a meta final nada' Adolfo Sánchez Vázquez (1915) obteve recentemente um doutoramento honoris causa pela Universidade de Buenos Aires. Por este motivo foi entrevistado por Karina Avilés em La Jornada (09/Set/02). Nela Sánchez Vázquez sustenta que a esquerda dos nossos dias deixou de lado o socialismo como alternativa ao capitalismo e tratou "de situar-se nas mudanças possíveis dentro do sistema, mas perdendo a perspectiva de que a alternativa verdadeiramente emancipatória tem que vir de um sistema que destrua as bases fundamentais do capitalismo" (os itálicos são meus).

        Quando no Fórum Social Mundial em Porto Alegre se defende a frase "outro mundo é possível", não se diz qual, em que consistiria nem como seria alcançado. As posições anti-globalização neoliberal unem, na acção, milhares de pessoas de diversos pontos do planeta, mas existe a impressão de que essas posições anti não conduzem à elaboração de um programa nem à precisão de um objectivo. Foi dito, com boa dose de razão, que um programa de luta e a precisão de um objectivo desuniriam aqueles que hoje se identificam por sua oposição a várias das manifestações visíveis (e por vezes superficiais) do capitalismo.

E quando alguém pergunta aos seus defensores o que querem, além de se oporem, respondem sem corar que esses activistas que se opõem à globalização neoliberal são anti-capitalistas ainda que não se tenham dado conta disso. São socialistas?, pergunto, e invariavelmente dizem-me que isso não importa. Têm um programa?, torno a perguntar, e respondem-me com uma frase de Marx que, 127 anos depois de ter sido escrita, ganhou uma enorme importância "teórica" para os defensores do movimentismo: "cada passo de movimento real vale mais do que uma dezena de programas". Resposta fácil, sobretudo se não se leva em conta o contexto dessa carta de Marx a Bracke, provocada pela crítica ao primeiro Programa de Gotha, em 1875.

Eu diria que algo muito semelhante foi escrito por Eduard Bernstein, o pai do revisionismo reformista que nutriu os sociais-democratas durante décadas e que lhes deu armas teóricas para justificar o seu gradualismo na direcção de um socialismo que nunca quiseram. Bernstein escreveu: "No meu conceito, o que se chama fim último do socialismo não é nada, pois o importante é o movimento", que Trotsky sintetizou, atribuindo-o a Bernstein para criticá-lo, na expressão "O movimento é tudo, a meta final nada", que é mais contundente para justificar o movimentismo actual. Não deixa de ser paradoxal que um sector das novas esquerdas de hoje alimente-se, para justificar-se, de pensadores antagónicos (Marx e Bernstein) com suas frases citadas e utilizadas fora do contexto.

        O que Marx pretendia em sua carta a Bracke disse-o com absoluta clareza. Tratava-se de uma crítica ao projecto de unidade dos ensenachianos (o grupo de Bebel, Liebknecht e outros) com os lassalleanos, que eram incompatíveis. O que dizia Marx é que as diferenças entre ambos os grupos davam, eventualmente, para "concertar um acordo para a acção contra o inimigo comum" (os itálicos são meus), não para redigir um programa de princípios e com base neste propor uma organização ou algo semelhante para uma luta por uma meta final. Tal como agora, com muitos dos chamados globalifóbicos .

        Não é a mesma coisa "concertar um acordo para a acção" e coincidir no que se deseja em resultado dessa acção. Quem estaria contra a afirmação de que outro mundo é possível? Nisto concordariam tanto os socialistas como os anarquistas, tanto a esquerda como a direita e até a ultradireita. Todos estamos de acordo em que outro mundo é possível. Mas as coincidências romper-se-iam no momento em que se definisse ou caracterizasse o que cada um entende por outro mundo possível.

Os defensores do movimentismo, emocionados porque 0,001% da população mundial reuniu-se em Porto Alegre nos princípios deste ano (60 mil pessoas), opõem-se à possibilidade de um programa e à definição de uma meta final porque sabem que haveria desunião, e acreditam, numa utopia sem base na realidade, numa utopia extática (assim, com x), que dessa forma, sem um programa e sem acordos sobre uma meta final, se vencerão os donos do dinheiro sem formar um contra-poder (porque também desprezam tudo o que tenha a ver com o poder e a política, os partidos inclusive). Entretanto, as diferenças já afloraram, mas muito poucos parecem estar dispostos a debatê-las. Como se cada qual preferisse encerrar-se na "sua verdade" e tolerar os demais. É o movimento e, com este, a incerteza de uma utopia sem proposta.

[*] Colaborador do jornal mexicano "La Jornada" .

Este artigo encontra-se em http://resistir.info

14/Set/02