Um encontro com Julian Assange na prisão
Mesmo tendo cumprido em abril a sentença que o levou à
prisão, Assange continua detido
A Lei de Espionagem americana está sendo usada pela primeira vez
contra um editor
As acusações nos Estados Unidos por publicar
informações de interesse público podem condená-lo a
175 anos de cadeia
por Felicity Ruby
[*]
Só conheci Julian Assange no cárcere. Faz nove anos que o
visito na Inglaterra, trazendo notícias e solidariedade australiana.
Quando fui a Ellingham Hall [histórica propriedade rural em Norfolk onde
Assange ficou em prisão domiciliar durante dois anos], levei
música e chocolate. Quando fui à embaixada do Equador, levei
camisas de flanela, cópias de
Rake,
uma série de TV australiana, um pote de Wizz Fizz, uma marca
australiana de sorvete, e folhas de eucalipto. Mas para o presídio de
Belmarsh não se pode levar nada nenhum presente, nenhum livro,
nenhuma folha de papel.
E, depois de ter passado por lá, voltei para a Austrália, um
país tão distante que o abandonou em quase todos os aspectos.
Ao longo dos anos, aprendi a não perguntar a Julian "como
você está?", porque é bem óbvio como ele
está: detido, difamado, caluniado, sem liberdade, preso em
"celas" cada vez mais estreitas, frias, escuras e húmidas
, perseguido e punido por publicar informações. Aprendi a
não reclamar da chuva ou comentar o lindo dia que está fazendo,
porque ele não sai há tanto tempo que sentir até uma
nevasca seria uma bênção. Aprendi também que
não é reconfortante, mas sim cruel, falar sobre pores-do-sol,
sobre as aves
kookaburras,
nativas da Austrália, ou sobre viagens de carro. Que não ajuda
a assegurá-lo de que, como eu e meu cão, ele também
encontrará rastros de animais nos parques naturais australianos quando
algum dia voltar para casa, mesmo que eu pense nisso quase todos os dias.
A natureza prolongada e de crescente intensidade de seu confinamento me
confronta enquanto, na primeira fila, eu espero na porta de entrada daquela
prisão de tijolos marrons, no último dia 12 de setembro. No
centro de visitantes, do lado oposto, cadastraram minhas digitais depois de eu
ter mostrado dois comprovantes de residência diferentes e meu passaporte.
Certifiquei-me de ter tirado absolutamente tudo de meus bolsos e guardei minha
bolsa, ficando apenas com uma nota de 20 libras para comprar chocolate e
sanduíches. Apesar do teatro de segurança que se segue, o
dinheiro é roubado em algum momento durante o percurso por não
menos de quatro corredores cujas portas traseiras são seladas antes que
as portas dianteiras se abram, depois por um detector de metal, para em seguida
ser revistada e ter minha boca e orelhas inspecionadas.
Depois de calçarem de novo os sapatos, os visitantes atravessam uma
área externa e encaram a realidade da prisão: uma cerca de
aço com arame farpado em lâmina de uns 4 metros de altura ao redor
de toda a sua extensão. Eu me apresso até o próximo
prédio e chego a uma sala onde 30 pequenas mesas estão fixadas no
chão, cada uma com uma cadeira azul de plástico de frente para
três cadeiras verdes.
Ele se senta em uma das cadeiras azuis.
Eu hesito agora, como sempre, em descrevê-lo. Isso também aprendi:
é um impulso protetor contra o fascínio mórbido de alguns
de seus defensores e também daqueles que apreciam seu sofrimento.
Sua saúde já estava se deteriorando seriamente quando ele deixou
a embaixada. Ele confirma que ainda está na ala hospitalar, apesar de
ainda não ter visto especialistas, o que é claramente
necessário depois de tudo que passou. Ele explica que é
transportado para dentro e para fora de sua cela, onde fica 22 horas por dia,
sob um procedimento chamado de "movimentos controlados", o que
significa que a prisão é trancada e os corredores, esvaziados.
Ele descreve o pátio de exercícios. Na parede se lê:
"Aprecie as folhas de relva sob seus pés"; mas não
há relva, apenas betão. Não há nada verde, apenas
betão e grades no alto.
Após tão extremo isolamento e privação de companhia
humana, claro que ele está feliz em ver amigos eu não
estou sozinha. Ele mascara o desconforto e se esforça, sorrindo das
minhas piadas, paciente com a minha falta de jeito, acenando e me encorajando a
lembrar mensagens parcialmente memorizadas. Eu me levanto para pegar comida
enquanto ele coloca a conversa em dia com outro amigo. É aí que
percebo que não tenho dinheiro, então volto para pegar o deles.
Quando retorno para a fila, uma moça com um
hijab
[véu muçulmano] fala: "Ele não pertence a esse
lugar. Ele não deveria estar aqui. Nós sabemos das coisas por
causa dele. Ele tem muitos apoiadores na comunidade muçulmana".
Essa compreensão e a solidariedade ajudam a me acalmar depois da
provação de entrar neste lugar frio; até aqui existe
calor, amizade, gentileza. Fico muito agradecida àquela mulher e volto
com uma bandeja de
junk food
para contar o que ela tinha acabado de me dizer, o que prova mais uma vez que
muitas pessoas conseguem enxergar através da manipulação
mediática intensiva contra Julian. E que elas têm senso de
humanidade, bom senso, empatia e compaixão que penetram esse filtro.
Julian recebe duas visitas sociais por mês; a última havia sido
três semanas e meia antes, por isso conversamos rápido, trocando
tantas palavras, mensagens e ideias quanto possível. Nunca houve
silêncios entre nós e, abastecidos apenas por café
até altas horas, frequentemente falávamos ao mesmo tempo, um
respondendo enquanto o outro falava, mas o barulho daquela sala é alto
demais para isso.
Várias vezes ele precisa fechar os olhos para organizar sua linha de
raciocínio, e então desatamos novamente, conscientes de que o
lento tempo da prisão se acelera durante as visitas, que são
muito barulhentas outros 30 prisioneiros estão vendo seus amigos
e famílias, crianças estão tentando ser ouvidas, e,
presumivelmente, microfones e câmaras estão se esforçando
para ouvir o que está sendo dito.
O especialista em tortura da ONU que também o visitou na prisão
disse
que Julian exibe efeitos de tortura psicológica prolongada. Ele tem
sido torturado pela detenção indefinida, e a perspectiva de
extradição para os Estados Unidos, para um julgamento
espetacularizado, onde ele enfrentaria uma possível pena de 175 anos de
prisão uma pena de morte, efetivamente , é sem
dúvida uma forma de tortura.
Mesmo assim, ele me surpreende diversas vezes ao tirar o foco da conversa de si
mesmo e o colocar nos princípios e implicações mais amplos
do seu caso: "Não é só sobre mim, Flick; é
sobre tantas pessoas, todos os jornalistas no Reino Unido. Se eu posso ser
capturado, qualquer australiano trabalhando em Londres, qualquer jornalista ou
editor pode ser detido simplesmente por estar fazendo seu trabalho".
Algumas semanas antes, em um evento do Partido Verde australiano em Sydney, eu
havia ficado irritada quando alguém disse algo parecido:
"Não é sobre Julian; é sobre o jornalismo". Eu
respondi: "E quando vai ser sobre Julian também? Quando ele estiver
morto? Quando eles o tiverem matado? Quando você acha que isso vai poder
ser sobre um editor australiano que está numa prisão do Reino
Unido, sendo punido pelos Estados Unidos por publicar a verdade sobre as
guerras no Iraque e no Afeganistão?".
Quando se trata de Julian, nada é normal; cada passo do processo legal e
político dos últimos nove anos foi anômalo, e o contexto e
pretexto também foram manipulados por um grande número de
estratégias,
algumas delas vazadas
, para infectar e influenciar a percepção pública que se
tem dele, de seu trabalho e de seus apoiadores. Isso muda radicalmente
conversas normais sobre ele, mesmo com alguns de meus amigos mais cautelosos.
Eu dou um abraço de despedida em um homem muito mais magro do que aquele
que eu conhecia, e uma pessoa diferente desaparece no corredor quando a visita
acaba, mesmo que os nossos punhos esquerdos estejam erguidos, como sempre.
No nosso caminho de volta da visita, recebemos uma ligação para
avisar que uma audiência técnica havia sido inesperadamente
adiantada para o dia seguinte.
Nessa "audiência técnica", o juiz distrital
descartou preventivamente a possibilidade de fiança
. Não era uma audiência sobre fiança, e os advogados de
Julian nem haviam tido a possibilidade de solicitá-la, mas o juiz a
descartou sem ouvir quaisquer argumentos ou fatos. Quando o juiz perguntou se
ele entendeu, Julian disse: "Na verdade, não. Tenho certeza de que
os advogados vão explicar". Ele não entendeu porque isso
é irregular, mais uma vez, mas também porque não tem
acesso a documentos do tribunal e a documentos legais para ajudar a preparar
seu caso.
No dia 23 de setembro, Julian completou sua sentença por violar as
condições da liberdade provisória e será mantido
preso apenas para que os Estados Unidos possam tentar extraditá-lo. Isso
significa que ele cumpriu sentença por ter cometido o crime de solicitar
e receber asilo político.
Por que querem trancafiar Assange
O Equador garantiu o asilo porque era óbvio que os Estados Unidos planejavam processá-lo por suas publicações
. Entre muitas outras coisas, ele está sendo processado por ter
publicado o número real de civis mortos no
Iraque
e no Afeganistão
milhares de pessoas
que foram vítimas de bombardeios, mutilações e tortura.
Ele publicou também informações sobre jornalistas mortos
por tropas ocidentais, incluindo José Couso, o jornalista espanhol morto
no Iraque pelas tropas americanas (os espanhóis depois foram
pressionados pelos Estados Unidos a não pedir uma investigação
).
É por isto que eles querem trancafiar Julian: para fazer dele um
exemplo, e para que possam fazer isso de novo no futuro sem ter de prestar
contas.
A verdade é que Julian estava certo desde o começo. Ele buscou
asilo para se proteger dessa exata situação que enfrenta agora:
extradição para os EUA, para um julgamento espetacularizado e uma
pena de morte de
facto
por publicar informações de interesse público.
A natureza extrema das acusações silenciou o ódio
cáustico reservado a Julian, mas não as declarações
baseadas em psicologia barata sobre sua personalidade (uma personalidade que,
por acaso, eu aprecio e amo, assim como Noam Chomsky, Daniel Ellsberg, Slavoj
iek, Patti Smith, P. J. Harvey, Scott Ludlam, Ken Loach e
vários outros intelectuais e ativistas.)
Agora, o
New York Times
, o
Washington Post
, o
Wall Street Journal
e o
Guardian
fazem comentários depreciativos sobre a personalidade de Julian antes
de expressar grande preocupação com as acusações
às quais ele está respondendo, porque, de fato, os americanos
"criminalizam práticas comuns do jornalismo", como disse Amal
Clooney, a emissária especial do Reino Unido para a liberdade de
imprensa, em junho, na Conferência Global sobre Liberdade de Imprensa.
Então, finalmente, editores e jornalistas do mundo todo entendem que
seus destinos estão interligados ao de Julian, para quem não
há nenhuma esperança de julgamento justo nos Estados Unidos.
Ele está sendo acusado com base na Lei de Espionagem, usada pela
primeira vez contra um editor, que não permite que se use como defesa o
argumento de interesse público.
É por isso que o juiz britânico e a ministra do Interior
não deveriam extraditar Julian Assange para os Estados Unidos.
Algumas vozes estão se levantando conforme se começa a perceber
que, se essa extradição ocorrer, qualquer jornalista que cubra
segurança nacional ou faça um trabalho investigativo no Reino
Unido ou em qualquer outro país pode ser detido, estabelecendo um
precedente terrível para todos os jornalistas e editores.
Nos Estados Unidos, o Departamento de Justiça de Trump está
tentando coagir Chelsea Manning e Jeremy Hammond, duas fontes de vazamentos
para o WikiLeaks, a depor contra Julian num processo secreto sem juiz
uma instituição abolida em todos os outros países, exceto
na Libéria.
Apesar de eles também estarem presos indefinidamente, Manning e Hammond
estão resistindo. Onde isso vai acabar? Precisa acabar com Julian saindo
de Belmarsh e, depois, do aeroporto de Sydney, para que seus olhos,
prejudicados por tantos anos de confinamento, possam se habituar a encontrar,
aqui em casa, trilhas de
vombates
, marsupiais originários da Austrália, e de
wallabies
, animais australianos da mesma família dos cangurus, mas de menor porte.
Até que isso aconteça, precisamos continuar lutando contra sua
extradição, pedindo que o Reino Unido resista e que o governo
australiano traga seu cidadão e editor de volta para casa.
As acusações dos Estados Unidos contra Julian Assange e as
possíveis penas
Julian Assange responde por
18 acusações
:
1. Conspiração para violar a Lei de Espionagem: 10 anos.
2. Violação da Lei de Espionagem pela obtenção de
arquivos da Base Naval de Guantánamo por Manning: 10 anos.
3. Violação da Lei de Espionagem pela obtenção de
Cablegate [comunicações diplomáticas] por Manning: 10 anos.
4. Violação da Lei de Espionagem pela obtenção de
registros da Guerra do Iraque por Manning: 10 anos.
5. Tentativa de receber e obter informações sigilosas: 10 anos.
6. Obtenção e recepção ilegal de arquivos de
Guantánamo: 10 anos.
7. Obtenção e recepção ilegal de Cablegate: 10 anos.
8. Obtenção e recepção ilegal de registros da
Guerra do Iraque: 10 anos.
9. Causar divulgação ilegal de arquivos de Guantánamo por
Manning: 10 anos.
10. Causar divulgação ilegal de Cablegate por Manning: 10 anos.
11. Causar divulgação ilegal de registros da Guerra do Iraque por
Manning: 10 anos.
12. Induzir Manning a comunicar, entregar e transmitir arquivos de
Guantánamo: 10 anos.
13. Induzir Manning a comunicar, entregar e transmitir Cablegate: 10 anos.
14. Induzir Manning a comunicar, entregar e transmitir registros da Guerra do
Iraque: 10 anos.
15. "Publicação pura" de Diários da Guerra do
Afeganistão: 10 anos.
16. "Publicação pura" de Registros da Guerra do Iraque:
10 anos.
17. "Publicação pura" de Cablegate: 10 anos.
18. Conspiração para violar a Lei de Fraude e Abuso de
Computadores (CFFA, em inglês): 5 anos.
[*]
@FlickRubicon
O original encontra-se na revista australiana
Arena Publications
e a tradução de Bárbara D'Osualdo em
apublica.org/2019/10/um-encontro-com-julian-assange-na-prisao/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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