O poder contra a imprensa:
Os casos de extradição de Pinochet e de Assange
Oito meses a partir de 28 de Junho de 2019, uma das mais importantes
audiências de extradição na história recente
acontecerá no Reino Unido, quando um tribunal britânico e o
ministro do Interior determinarão se o editor do WikiLeaks Julian Assange
será extraditado para os Estados Unidos a fim de enfrentar
acusações de espionagem pelo crime de jornalismo.
Há vinte e um anos atrás, noutro caso histórico de
extradição, a Grã-Bretanha teve que decidir se enviaria o
ex-ditador chileno Augusto Pinochet para Espanha pelo crime de assassinato em
massa.
Em outubro de 1998, Pinochet, cujo regime se tornou
sinónimo de assassinatos políticos em massa
, "desaparecimentos" e tortura, foi
preso
em Londres enquanto estava em tratamento médico.
Um juiz em Madrid,
Baltasar Garzón
, pediu sua extradição em conexão com a morte de
cidadãos espanhóis no Chile.
Argumentando com a incapacidade de Pinochet de submeter-se a julgamento devido
à idade, em 2000 o Reino Unido acabou por impedir
impediu
que ele fosse extraditado para a Espanha onde teria enfrentado processo por
abusos de direitos humanos.
Num ponto inicial do processo a advogada de Pinochet, Clare Montgomery,
apresentou em sua defesa um argumento que nada tinha a ver com idade
ou com problemas de saúde.
"Os Estados e os órgãos do Estado, incluindo chefes de
Estado e ex-chefes de Estado, têm direito à imunidade absoluta de
processos criminais nos tribunais nacionais de outros países",
disse Montgomery, segundo citou o jornal
The Guardian
. Ela argumentou que os crimes contra a humanidade devem ser definidos de forma
restrita no contexto de casos de guerra internacional, tal como relatou a
BBC
.
O argumento de imunidade de Montgomery foi
derrubado pela Câmara de Lordes
. Mas o tribunal de extradição determinou que a saúde
precária de Pinochet, amigo da ex-primeira-ministra Margaret Thatcher, o
impediria de ser enviado à Espanha.
Embora os casos de Pinochet e Assange estejam separados por mais de duas
décadas, dois dos participantes são os mesmos, desta vez
desempenhando papéis muito diferentes.
Montgomery reapareceu no caso de Assange para argumentar acerca do
direito de o promotor sueco
obter um mandado de prisão europeu para Assange.
Este seu argumento acabou por falhar. Um
tribunal sueco
recentemente negou o mandado de detenção europeu. Mas, como no
caso de Pinochet, Montgomery ajudou a ganhar tempo, desta vez permitindo que as
alegações sexuais suecas persistissem e enlameassem a
reputação de Assange.
Garzón, o juiz espanhol, que requisitou a extradição de
Pinochet, também reaparece no caso de Assange. Ele é um conhecido
defensor dos direitos humanos, "visto por muitos como o mais corajoso
vigilante legal em Espanha e o flagelo de políticos e senhores das
drogas em todo o mundo", como
The Independent
o descreveu há alguns anos.
Ele agora lidera a equipa legal de Assange.
Amigos e inimigos
A questão a destacar é se o sistema legal britânico
deixou ir embora sem ser julgado um notório ditador como Pinochet mas
enviará um editor como Assange para os Estados Unidos,
onde enfrentará a prisão perpétua.
A maré do sentimento político tem corrido contra Assange.
Perante o facto de o secretário do Interior do Reino Unido ter assinado
o pedido de extradição de Assange para os EUA,
levando o Tribunal de Magistrados
a marcar uma audiência de cinco dias no final de Fevereiro de 2020, os
legisladores britânicos
pediram publicamente que o caso contra Assange prosseguisse
. Poucas autoridades eleitas defenderam Assange (a sua imagem foi
manchada por alegações e críticas não comprovadas
da Suécia acerca da eleição dos EUA em 2016, que nada tem
a ver com o pedido de extradição).
Pinochet, por outro lado teve amigos altamente colocados, Tatcher
pediu abertamente a sua libertação
.
"[Pinochet] teria o hábito de enviar chocolates e flores para
[Thatcher] durante as suas visitas semestrais a Londres e tomar chá com
ela sempre que possível. Apenas duas semanas antes de sua prisão,
Pinochet foi recebido pelos Thatchers na sua casa em Chester Square,
Londres", relatou a
BBC
e a
CNN
informou sobre a "famosa relação estreita".
Afeto semelhante também foi documentado entre Pinochet e o
ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger.
The Nation
relatou num memorando desclassificado uma conversa privada em Santiago do
Chile, em Junho de 1976, que revelou "as expressões de Kissinger de
"amizade", compreensão "simpática" e desejos
de sucesso para Pinochet no auge da sua repressão, quando muitos desses
crimes tortura, desaparecimentos, terrorismo internacional
estavam a ser cometidos".
Abuso sistemático e difundido
Pinochet subiu ao poder depois de um golpe de Estado violento das forças
armadas chilenas em 11 de Setembro de 1973, apoiado pelos EUA, que derrubou o
presidente democraticamente eleito do país, o socialista Salvador
Allende. O golpe
foi qualificado
como "um dos mais brutais da história moderna da América
Latina".
A CIA financiou operações no Chile com
milhões
de dólares antes e depois da eleição de Allende conforme
no Senado dos EUA, em 1975, relatou a
Comissão Church
.
Embora o relatório da Comissão Church não tenha encontrado
evidências de que a CIA financiou diretamente o golpe, o
National Security Archive
observou que a CIA "apoiou ativamente a Junta militar após o
derrube do presidente Allende. Muitos dos oficiais de Pinochet estavam
envolvidos em abusos sistemáticos e generalizados dos direitos humanos.
Alguns deles eram contactos da CIA, seus agentes ou dos militares dos EUA".
A violência infligida por Pinochet ultrapassou as fronteiras do Chile. As
suas ordens de extermínio estão ligadas ao assassinato de um
dissidente chileno exilado, o ex-ministro Orlando Letelier,
na
explosão de um carro-bomba no solo dos EUA
. O ataque também matou Ronni Moffitt, um cidadão dos EUA.
Mais de
40 mil pessoas
, muitas apenas com ténues ligações a dissidentes, foram
"desaparecidas", torturadas ou mortas durante os 17 anos do reinado
de terror de Pinochet.
O Chile de Pinochet, quase imediatamente após o golpe, tornou-se um
laboratório para a teoria económica neoliberal da Escola de
Chicago, um novo laissez-faire aplicado na ponta das armas. Thatcher e o
presidente Ronald Reagan defenderam um sistema de privatizações,
comércio livre, cortes nos serviços sociais e
desregulamentação dos bancos e dos negócios, o que levou
à maior desigualdade num século.
Em contraste com esses crimes e corrupção, Assange publicou
milhares de documentos confidenciais mostrando como as autoridades dos EUA e de
outras nações estiveram comprometidas em muitos atos de crime e
corrupção.
No entanto, está longe de ser certo que Assange venha a obter a mesma
indulgência no processo de extradição britânico que
Pinochet desfrutou.
Após a morte do ditador, Christopher Hitchens escreveu que o
Departamento de Justiça dos EUA tinha uma acusação contra
Pinochet completada já há algum tempo. "Mas a
acusação nunca foi revelada", Hitchens
reportou
na [revista]
Slate.
A acusação contra Assange, em contraste, não foi apenas
revelada, mais acusações foram acumuladas.
Dadas as dificuldades de longa data que ele teve no acesso à
justiça, é justo dizer que o Reino Unido e o resto do mundo
ocidental estão a cometer um "desaparecimento forçado"
em câmara lenta de Assange.
Algumas revelações da WikiLeaks:
The Revelations of WikiLeaks: No. 1 The Video that Put Assange in US Crosshairs
(As revelações da WikiLeaks: Nº 1 O vídeo que colocou Assange na alça
da mira)
The Revelations of WikiLeaks: No. 2 The Leak That ‘Exposed the True Afghan War’
(As revelações da WikiLeaks: Nº 2 A fuga que revelou a verdade da
guerra afegã).
The Revelations of WikiLeaks: No. 3 The Most Extensive Classified Leak in History
(As revelações da WikiLeaks: Nº 3 A mais vasta fuga classificada da
história)
The Revelations of WikiLeaks: No. 4 The Haunting Case of a Belgian Child Killer and How WikiLeaks Helped Crack It
(As revelações da WikiLeaks: Nº 4 O assombroso caso do assassino de
uma criança belga e como a WikiLeaks ajudou a decifrá-lo)
[*]
Repórter freelancer e colaboradora regular do Consortium News.
Esta é uma versão atualizada de artigo publicado originalmente em
Disobedient Media
.
O original encontra-se em
consortiumnews.com/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|