Sobre ratos, transgênicos e apagamento de pistas
por Jean Remy Davée Guimarães
[*]
Em coluna de setembro de 2012, comentei o artigo do professor Gilles-Eric
Séralini, publicado na
Food and Chemical Toxicology.
Esse estudo,
realizado ao longo de dois anos, mostrava que ratos expostos ao milho
transgênico NK603 e ao Roundup, seu herbicida associado, desenvolviam
diversos tumores, além de problemas renais e hepáticos.
Pois, acredite se quiser, o estudo foi retirado pela própria revista,
pouco mais de um ano após sua publicação.
Segundo as normas dessa revista (e da esmagadora maioria delas), os
únicos critérios que podem levar à decisão de
retirar um trabalho publicado na mesma são: falha ética,
plágio, publicação anterior em outro veículo ou
ainda conclusões não confiáveis, seja por fraude ou erro
de boa-fé (erro de cálculo, erro experimental).
No entanto, o editor-chefe da revista, Wallace Hayes, em
carta de 19/11/2013 ao primeiro autor
, informa a intenção de retirar o estudo da revista, esclarecendo
que o fato não se deve a fraude ou sinais de deformação
intencional dos dados.
O motivo alegado seriam as "legítimas preocupações
relativas ao reduzido número de animais em cada grupo (dez ratos), assim
como à escolha da linhagem de ratos utilizada nos testes". O estudo
teria sido ainda retirado devido a seu caráter "não
conclusivo".
Note que nenhum dos motivos apresentados se enquadra nos critérios de
exclusão explicitados nas normas da revista, o que motivou
ríspidos protestos do professor Séralini e equipe, além de
promessas de medidas legais. Lembre também que os testes
toxicológicos realizados pelas próprias indústrias para
licenciar seus produtos, transgênicos ou não, duram apenas
três meses (contra os 24 do estudo do professor Séralini), e seus
grupos experimentais contêm tipicamente
dez ratos.
A acusação de não conclusividade é parte do cinto
de utilidades de todos os lobbies corporativos incomodados por estudos
científicos que ousem duvidar da inocuidade de seus produtos. Se
dependêssemos de estudos que provem com 100% de certeza que a
exposição a chumbo, benzeno, amianto ou produtos de
combustão é prejudicial à saúde, estaríamos
todos respirando um ar pior que o de Londres no pico da revolução
industrial e fumando em elevadores, autocarros, cinemas, escritórios e
consultórios. Mas as corporações são assim: quando
lhes convém, aceitam 95% de certeza, quando não, nem 100%
são o bastante.
As más línguas juram que a decisão da revista se deve
à recente inclusão, em seu comitê editorial, do
biólogo Richard Goodman, professor da Universidade de Nebraska (EUA) e
ex-funcionário da Monsanto. Pode até ser, mas nem precisava
disso, pois breves buscas sobre o currículo dos demais membros do
comitê revelam que vários deles têm ou tiveram estreitos
laços com empresas de tabaco ou agroquímicas (sementes e
pesticidas).
Inimigo infiltrado
Diante disso, a maior surpresa talvez não seja a retirada do artigo do
professor Séralini dessa revista, mas sim a sua publicação
inicial. Afinal, esses setores de atividade não se caracterizam por um
histórico de relações harmoniosas com a ciência em
geral e a toxicologia em particular.
Mas sabe como é: se você não pode vencer o inimigo,
junte-se a ele. Ou infiltre-se. E é precisamente o que as
corporações vêm se esmerando em fazer: nuclear todas as
instâncias decisórias relevantes para seus interesses, sejam elas
nacionais ou multilaterais, incluindo as próprias
instituições científicas, como as revistas. Blogues,
colunas ou matérias publicadas em qualquer meio de difusão que
mencionem as palavras-chave sensíveis ao setor são também
imediatamente detectadas, deflagrando uma blitzkrieg impiedosa visando à
desmoralização e, portanto, eliminação da
ameaça.
Se você acha que isso é teoria da conspiração,
experimente estudar efeitos sanitários ou ambientais de qualquer coisa
que seja produzida por uma entidade com CNPJ e concluir, mesmo que com apenas
95% de certeza, que eles não são inócuos. Você
poderá, como o professor Séralini, ser acusado na web de
pertencer a um movimento sectário cristão, e entrevistarão
suas ex-colegas de jardim de infância, que revelarão que, sim,
você grudava suas melecas embaixo da mesa e não trocava de cueca
todo dia.
Esta coluna é testemunha privilegiada desse estado de coisas. Embora
pouco otimistas e frequentemente ácidos, os textos aqui publicados
raramente suscitam comentários de leitores, a menos que tenham como foco
temas sensíveis para setores corporativos, como efeitos de pesticidas,
transgênicos, emissões de carbono. Colunas sobre esses temas geram
invariavelmente reações iradas, repetitivas, mas sempre
instrutivas. Mas quem sabe resolvem ficar quietos desta vez, só para me
contradizer?
E enquanto não vêm a público os dados de novos estudos de
longa duração sobre os efeitos de transgênicos,
recomendados pela Agência Europeia de Segurança Sanitária
da Alimentação, do Ambiente e do Trabalho (ANSES), o congresso
dos 'Estados Unidos do Brasil' se prepara para votar uma
resolução suspendendo a obrigatoriedade de rotulagem de produtos
contendo transgênicos.
Cientificamente, a suspensão da rotulagem só faria sentido se
tivéssemos 95% de certeza que os transgênicos são
inócuos à saúde.
Temos mesmo, ou seria só queima de arquivo?
P.S.: Feliz ano novo, de preferência com uma ceia orgânica.
Você nunca vai conseguir, se não tentar.
27/Dezembro/2013
[*]
Do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, Universidade Federal do
Rio de Janeiro
O original encontra-se em
cienciahoje.uol.com.br/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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