Venezuela e Angola, história de duas eleições
por João Carlos Graça
[*]
Decorreram no último mês e meio dois atos eleitorais sem
dúvida importantes, embora entre si com características muito
distintas: as eleições para a Assembleia Constituinte na
Venezuela e as eleições legislativas em Angola. Ambas produziram
resultados positivos, mas os problemas defrontados, embora quanto a alguns
aspetos fundamentalmente os mesmos, assumiram também traços muito
diversos, por vezes mesmo diametralmente opostos.
Entendamo-nos. Na Venezuela está-se perante um poder oficialmente
apostado na transição para o socialismo. O regime tem sido e
continua a ser pluripartidário, com uma componente presidencial
veiculando muito mais facilmente as pretensões dos grupos desfavorecidos
(relativamente aos quais o presidente anterior, Hugo Chávez, ganhou uma
verdadeira aura de dirigente "carismático"), ao passo que na
componente parlamentar os opositores de direita têm fundamentalmente sido
capazes de manter a ascensão: o "chavismo" ou
"bolivarismo", goste-se ou não desse facto, sempre tem sido
mais fraco em popularidade do que Chávez. O ambiente cultural
venezuelano é sumamente condicionado pelo predomínio do universo
mental "pós-gutenberguiano", ou mais exatamente
audiovisual/televisivo: a Venezuela, quanto a isso é um caso quase
arquetípico de país católico e latino-americano, é
tradicionalmente uma sociedade de novelas televisivas, concursos de
"misses" alternados com missas
e futebol; sempre muito futebol.
É também um típico país de "hemisfério
ocidental", com os cidadãos normais usualmente armados e havendo
muito, muito crime; aliás, muito dele violento. A Venezuela é
outrossim um país produtor e exportador de petróleo, com as
vantagens, mas também os problemas associados, nomeadamente a chamada
"
doença holandesa
", ou seja, propensão para a carestia dos bens (inclusive os bens
essenciais) no conjunto da economia, por "contágio" da
capacidade aquisitiva excecionalmente elevada que o sector petrolífero
possui. Obviamente, isto gera grandes assimetrias e tendências para
enormes desigualdades sociais, que só um poder político
vigilante, esclarecido e com intuitos igualitários pode corrigir.
Alguma coisa tem sido feito na Venezuela, desde que o "bolivarismo"
está no poder, para repartir pelos pobres os benefícios do
petróleo. Bem mais haverá ainda a fazer nesse sentido, decerto.
Mas muito mais ainda há a fazer numa outra vertente: no sentido de
"desagarrar" a economia e a sociedade venezuelanas do enorme
"vício" que é a dependência do petróleo.
Dito isto, porém, reconheça-se igualmente: identificar os
males
é sem dúvida bom e é sempre importante; mas
superá-los é, por vezes, muitíssimo mais difícil.
Igualmente "agarradas" ao petróleo estão a economia e a
sociedade angolanas, padecendo também em elevado grau de
"doença holandesa" e sofrendo de enormes desigualdades,
aliás mesmo de pobreza generalizada. A orientação
doutrinária do governo angolano não é a mesma da
Venezuela: Angola mudou dum regime monopartidário oficialmente
socialista para um regime pluripartidário, o partido dominante
continuando todavia o mesmo (o MPLA), a bússola doutrinal deste passando
entretanto a ser a social-democracia e a "economia de mercado"
ficando mesmo consagrada no texto constitucional angolano. Estas
diferenças doutrinárias oficiais podem não dizer tudo, mas
não são completamente irrelevantes. A título de exemplo,
em Angola faria todo o sentido pensar na constituição dum
"cabaz de compras" de produtos essenciais, garantindo
administrativamente, duma forma ou outra, que os bens fundamentais chegariam ao
conjunto da população, mesmo os mais desfavorecidos, a
preços aceitáveis. Já na Venezuela, onde tais
intervenções na esfera comercial têm ocorrido, depara-se
todavia com uma atitude de boicote politicamente motivado por parte de setores
importantes do negócio da distribuição (algo de
análogo ao já ocorrido, por exemplo, no Chile de Allende), pelo
que a recomendação óbvia a fazer consiste, neste outro
caso, na necessidade de o estado interceder diretamente, através de
empresas públicas, no sector do comércio: por grosso e
mesmo a
retalho. De outra forma, quaisquer boas intenções de tabelamento
de preços tendem a naufragar na generalização das
práticas do açambarcamento e do chamado "mercado
negro": seja por motivos estritamente
económicos-utilitários, seja
a fortiori
com intuitos de sabotagem política.
Em todo o caso, para uma erradicação da pobreza e uma
atenuação das desigualdades em ambos estes países
deveremos ir muito mais longe e mais fundo do que a simples esfera comercial:
só o arranque sustentado de setores produtivos
não-petrolíferos poderá manter estes países em
trajetórias de progresso socioeconómico, com melhoria consistente
dos indicadores de desenvolvimento humano: cobertura
médico-sanitária, índices de educação,
esperança média de vida, etc. Mas é melhor reconhecer
igualmente que, em todo o caso, pouco importam decerto estas
recomendações dum "treinador de bancada" como eu:
mais
um, no meio de milhares e milhares destes que, por esse mundo fora, tentam
compensar as suas frustrações de intervenção
política no país de origem através dum protagonismo mais
ilusório do que real (e não raro disparatado) na vida
política de outros países. O que a generalidade dos comentadores
portugueses (e doutras sociedades ocidentais) tem dito e escrito acerca da
Venezuela e de Angola parece-me, de resto, revelar traços muito
interessantes sobretudo acerca desses comentadores e das respetivas sociedades:
não tanto a respeito da angolana e/ou da venezuelana.
Da diversidade de trajetórias
As trajetórias económicas e políticas de Angola e da
Venezuela são pois, assentemos bem nisso, muito diversas. Diversas foram
também as eleições que em ambos os países ocorreram
recentemente. Na Venezuela, depois dum período quase-insurrecional
sistemático por parte de vários setores da oposição
(sempre descaradamente apoiados por Washington e pelos media predominantemente
privados do país), a qual tinha já conseguido ganhar as
eleições legislativas, tinha-se caído numa
situação de impasse político e social em que se tornava
completamente impossível governar. O ambiente sedicioso de
"revolução colorida", a violência descarada e
desbragada contra os representantes do "bolivarismo" (até ao
puro e simples homicídio), os apelos diretos e explícitos
à desobediência civil, à violência e mesmo à
intervenção dos EUA e doutros países-satélite, como
a vizinha Colômbia, tinham feito da oposição oficial
venezuelana um bloco político com o qual era, e é, infelizmente
impossível negociar compromissos. A solução de
saída para o impasse consistiu assim no apelo ao mais fundamental e
inalienável dos poderes políticos, o poder constituinte,
capacidade imprescritível de todo o organismo político soberano.
Das características dessas eleições não direi nem
que são boas nem que são más. Parecem-me, muito
sinceramente, as possíveis e necessárias. A Venezuela continua a
ter um regime multipartidário, mas as candidaturas e as
eleições foram agora pessoais. Os candidatos eleitos
apresentaram-se a título essencialmente individual, representando a
nação venezuelana sem intermediação
partidária. As candidaturas reportaram-se maioritariamente a
círculos regionais, por local de recenseamento, mas houve também
candidatos eleitos por grupos socioprofissionais, alegadamente tentando
promover uma forma de "discriminação positiva" de
grupos habitualmente sub-representados: claro que na Venezuela, como
cá,
a maior parte dos deputados é usualmente composta por "doutores e
engenheiros", entre diversas outras eminências... Participaram 8
milhões e picos de eleitores, a oposição tendo recusado o
ato eleitoral e convocado, em vez disso, um referendo onde (sem qualquer
controle por parte de entidades terceiras) declarou terem participado 7
milhões e tantos eleitores. Assumindo como válidos os dados de
uns e outros, ficamos com 40 e poucos versus 30 e muitos por cento dos
eleitores, com perto de 20 por cento de abstenções, por
conseguinte. Fazendo a projeção para 100 por cento dos votos
válidos, temos que o "bolivarismo" recolherá o apoio de
cerca de 53 por cento dos eleitores, contra 47 por cento da
oposição. A população está bastante
mobilizada (Portugal só teve 20 por cento de abstenções
mesmo nos primeiros anos de democracia), mas o nível de conflitualidade
é, claro, excessivo. Constitui obviamente uma situação
anómala o governo e a oposição participarem não no
mesmo ato eleitoral, mas em eleições diferentes, que cada um
organiza por si. Mas devemos também, quanto a este boicote da
oposição às eleições para a Constituinte,
relembrar acima de tudo o famoso comentário de Willy Brandt a
propósito de análoga recusa por parte da oposição
aos Sandinistas, aquando das eleições de 1984 na
Nicarágua: em qualquer democracia, a oposição
só
concorre se quiser
Ao "bolivarismo" recomendaria eu, portanto, uma mistura de
paciência e de firmeza. Paciência para aturar alguns excessos e
verduras da oposição: pesporrente, rabugenta e
pateticamente
estragada com mimos, pelo excesso de apoios recebidos por parte dos EUA e
restante ""Ocidente". Mas firmeza para fazer compreender a toda
a gente que ninguém está acima da lei; e que as
eleições venezuelanas são mesmo para ser ganhas na
Venezuela: não na CNN ou na Fox News, não em Washington ou
em
Bruxelas. Exercício de oposição legítima, que
procura a popularidade contrapondo às atuações
governamentais várias propostas alternativas, que se revelam melhores:
claro que sim. "Revolução colorida", "praça
Maidan" e companhia, entendamo-nos: claro que não. E à
violência ilegítima deverá a república, tarde ou
cedo, responder com a sua própria violência legítima:
"
virtù contra furore
"
Oposição rabugenta, excessivamente mimada e tornando-se depois
violenta, por não ser capaz de reconhecer a sua própria derrota:
eis algo que Angola experimentou em força logo aquando das
eleições de 1992, as quais produziram uma vitória do MPLA
que a UNITA nunca quis admitir. As consequências foram demasiado
sérias, e demasiado atrozes, para se pretender voltar demoradamente a
elas. O período de guerra civil e estado de exceção
subsequente arrastou-se até 2008, quando a normalidade institucional
regressou enfim, com novas eleições legislativas de novo ganhas
pelo MPLA; e analogamente em 2012 e também agora, em 2017. O MPLA tem
ganho todas as eleições, a República de Angola adotando
entretanto o "modelo de Westminster" (muito provavelmente importado
via África do Sul) na designação do presidente da
república, o qual é por inerência o dirigente do partido
mais votado, da mesma forma que no Reino Unido é indicado o
primeiro-ministro. Angola permanece com problemas estruturais, em boa medida
causados pela guerra e mantidos, como já dito, pela dependência
excessiva do petróleo. Trata-se dum país em que, por exemplo,
para combater a miséria resultante em larga escala da
urbanização (caótica, excessiva, demasiado rápida e
tipicamente "terceiro-mundista"), faz sentido pensar num
momentâneo regresso parcial de população aos campos e em
medidas de "substituição de importações",
procurando garantir a autossuficiência alimentar, as quais
tenderão a permitir (quer pelo "lado da oferta" quer pelo
"lado da procura") uma significativa redução das
desigualdades e uma elevação consistente e sustentada dos
indicadores socioeconómicos.
Bom, mas deixemo-lo. É melhor não incorrer eu próprio no
erro que já acima denunciei, de me entusiasmar demasiado a pretender
resolver os problemas de outros países
Em todo o caso, quer em
Angola quer na Venezuela, duma coisa podemos estar certos: é da
presença massiva de imigrantes e de empresas chinesas (sobretudo
empresas estatais, mas não só), apostados nestes países,
como aliás no mundo em geral, em interações
económicas mutuamente vantajosas ("
win-win
", como se diz) através das quais a República Popular da
China continuará a desempenhar o papel de quase silencioso (mas
portentoso) promotor da paz e da prosperidade a nível global. Pensemos,
a título de exemplo, no que já tem sido feito, mas ainda falta
fazer, em matéria de construção de infraestruturas
materiais (vias de comunicação e outras) num país ainda em
grande medida destruído, como Angola.
E os demais países? Bem, os EUA continuarão presumivelmente
hostis no caso da Venezuela, sobretudo "atentistas" no caso de
Angola. Por enquanto, os negócios vão andando e a vida vai
decorrendo. Mas, se quisermos recordar, também na Líbia os
negócios iam andando; e todavia
Se as coisas ameaçarem a
qualquer momento correr mal aos EUA, se existir perceção de perda
de controlo militar ou político para a China ou a Rússia, se um
qualquer
lobby
pró-guerra for mais ativo e mais persuasivo da opinião
pública no Ocidente, nenhum país está livre de ser
repentinamente atacado e destruído, por guerra aberta, por conflitos
étnicos induzidos, secessões
à la carte
, "revoluções coloridas", etc. É pensar na
lista: Somália, Jugoslávia/Sérvia, Iémen,
Iraque,
Líbia, Ucrânia, Síria
É, portanto, crucial
evitar as pulsões para uma possível
state destruction,
simultaneamente promovendo a prosperidade e a equidade distributiva; e
canalizando as tensões políticas para um ambiente onde o protesto
e a dissensão possam ser exercidos sem ameaçar fazer ruir a ordem
pública.
Do missionarismo "humanitarista" do BE
Na Venezuela a tensão permanecerá portanto, muito provavelmente,
a níveis elevados. Em Angola pode bem acontecer o contrário, com
os vários intervenientes acomodando-se reciprocamente e optando pelo
business as usual
. Mesmo isso está, todavia, muito longe de ser um resultado garantido.
Para além dos problemas já mencionados da
diversificação relativamente à monocultura
petrolífera de exportação, da substituição
de importações, do combate à pobreza e às
desigualdades excessivas, da obtenção da autossuficiência
alimentar, Angola tem sempre presente um problema de tensões
étnicas, por enquanto contidas, mas podendo emergir e ser aproveitadas
com propósitos nefastos. Se relembrarmos, na Líbia a queda de
Khadaffi começou assim mesmo, com as tendências centrífugas
por parte da Cirenaica relativamente à Tripolitânia,
prolongando-se depois nas perseguições à
população imigrante provinda da África subsaariana
Pelo meio da diversidade angolana de etnias, a preservação da
língua portuguesa enquanto língua oficial, bem como da doutrina
"Netista" da indivisibilidade territorial da nação
angolana "de Cabinda ao Cunene", deveria ser algo a meditar
seriamente, confrontando essa conduta oficial da República de Angola com
o que é a atitude típica do meio português, ridiculamente
incapaz de ultrapassar os seus patéticos complexos de
"retornado" ressabiado, reclamando sempre ser mais genuinamente
angolano e melhor conhecedor de Angola do que os angolanos "de
lá", devendo pois ser ele a decidir quem deve governar em Angola:
o
MPLA, a UNITA ou outro qualquer; não os pobres angolanos "de
lá", evidentemente incapazes de conhecer de forma adequada os seus
verdadeiros interesses bem-entendidos
Quem leia a imprensa e/ou veja a televisão portuguesa fica, de facto,
rapidamente surpreendido acima de tudo por essa discrepância. Os
"chavistas" venezuelanos são obviamente uns
energúmenos, uns canalhas, uns facínoras totalitários,
etc. A ladainha do costume; nada de espantar até aí. Em
matéria de Venezuela, a opinião portuguesa alinha pelo conjunto
da opinião ocidental; ou melhor: é ela própria a
perfeita
"voz do dono". Mas no caso de Angola (em que os EUA permanecem apenas
expectantes e certamente já deram isso a perceber à
"União Europeia", pelo que a Federica Mogherini optou por
bater a bolinha baixo e manter o
low profile
), os meios portugueses notabilizam-se de imediato pela sua postura
"ultra": à direita, ao centro e à esquerda.
Aliás, sobretudo "à esquerda", pelo menos no que
respeita ao BE. A arrogância de pretenso "observador imparcial"
(e precetor moral) universal do Bloco tende, por outro lado, a contagiar a
"esquerda europeia" no seu conjunto, pelo que mais facilmente se
encontra de facto hostilidade face a Angola na dita "esquerda
europeia" do que à direita ou ao centro, onde os princípios
de realismo político tendem obviamente a prevalecer. Pelo
contrário, à "esquerda" o completo apagamento da
memória anticolonial, acrescido do predomínio descontrolado de
ideias de intervencionismo e "vigilantismo" humanitaristas (ou
alegando proceder com base no tema dos direitos humanos) tendem a constituir
este grupo num equivalente funcional perfeito daquilo que foram os
missionários evangélicos na propagação da ideia de
"missão civilizadora" do Ocidente, aquando da expansão
colonial/imperial da segunda metade de Oitocentos.
Outro tema forte é, quanto a isso, o da corrupção, assunto
a respeito do qual o "vigilantismo" do Bloco e afins contam com o
apoio irrestrito dos media e com a prevalência do
"diz-que-disse" e do "toda-a-gente-sabe" lusitanos. Por
exemplo, em Portugal "toda a gente sabe", hoje em dia, que
José Eduardo dos Santos é corrupto; e que corrupto é
também, evidentemente, o "regime de José Eduardo dos
Santos". Esquecemo-nos é de acrescentar, muito convenientemente,
que isso é uma afirmação muitíssimo imprecisa, onde
na verdade pode caber tudo e mais alguma coisa; e, por isso mesmo, não
cabe nada. Lembram-se dos casos de Milosevic, Khadaffi, Saddam e afins? Eram
todos corruptos, não eram? E também eram violentos, claro; e
até genocidas; e possuíam "armas de destruição
massiva"; e eram amigos da "Al Qaeda" e promoviam o terrorismo;
e
Será necessário acrescentar que, nestas matérias,
os media ocidentais e a respetiva indústria de
opinion-making
constituem não uma parte da solução, mas pelo
contrário uma parte (aliás importantíssima) dos problemas?
Que Milosevic acabou por ser inocentado, mas e daí? Que deu muito jeito
acusar e mandar prender o dirigente sérvio precisamente quando a NATO
bombardeava Belgrado, como forma de legitimar esta operação? Que
nunca se provou nada quanto à sua suposta violência, ou
corrupção, mas e daí? Também não aconteceu
nada, lá por causa desse pequeno "detalhe", à
inquisidora Carla Del Ponte ou ao "tribunal" superlativamente
prostibulário que mandou prender Milosevic. Que também Khadaffi e
família possuíam, "como toda a gente sabia", mundos e
fundos
mas afinal, quando se foi mesmo ver, não tinham nada
De nada disso sobrevive, porém, qualquer memória nos nossos media
(por onde tanto pululam os articulistas do Bloco), que continuam eles
próprios umas virgens incorruptas e uns "mocinhos" (como dizem
os brasileiros), sempre em luta contra um qualquer vilão do momento. E
ninguém, podemos disso estar absolutamente certos, pedirá alguma
vez contas a quem quer que seja, em Portugal, pelo labéu de
corrupção levantado quanto a José Eduardo dos Santos, e a
Angola em geral, ou ao "regime de José Eduardo dos Santos". Ou
mesmo, em boa verdade, quanto a Lula e Dilma, de quem também se garantia
a pés juntos, em determinada altura, que eram corruptos e que "toda
a gente sabia" isso mesmo
Da impertinência sociológica da categoria de
"corrupção"
Deste assunto da "corrupção", da sua enorme
variabilidade institucional, da tremenda imprecisão semântica que
o rodeia, tratar-se-á talvez mais tarde, que este artigo já vai
muito longo. Mas permitam-me, ainda assim, referir uns quantos aspetos
particularmente dignos de reflexão. "Corrupção"
é, claro, algo que depende imenso do contexto. Nos EUA a prática
do chamado
lobbying
é legal e está perfeitamente consagrada; em Portugal,
entretanto, ela configura crime de corrupção. Nos EUA não
existe financiamento público dos partidos políticos, mas por
outro lado não existe praticamente qualquer limite ao seu financiamento
privado, enquanto em Portugal é ao contrário:
financiamentos
privados de partidos são considerados assunto suspeito, a tratar com
pinças e muito desinfetante, mas o erário público, por
outro lado, financia os partidos. Qual regime político é mais
"corrupto": o português ou o norte-americano? Pelo que
me toca
(e não por mero patrioteirismo, creio) prefiro o modelo
português
mas reconheço que, do ponto de vista dos
"nativos" de qualquer dos países, os usos e costumes do outro
são facilmente suscetíveis de serem considerado como
"corruptos". Não será muito melhor, neste caso,
abandonar a categoria de "corrupção" nas
análises da nossa politologia comparativista, reconhecendo por outro
lado a centralidade, isso sim, das categorias de "viés
doutrinário", "ideologia" e outras?
No Brasil, nos tempos de Lula e de Dilma, o presidente era duma
orientação partidária, mas a maioria do legislativo era
doutra cor. Consequência: o chamado "presidencialismo de
coligação" (ou "de coalizão", como
lá se diz). Não existindo "uma maioria, um governo e um
presidente", o executivo, que era e é constitucionalmente o governo
do presidente, tem de negociar, regatear e trocar favores, visando obter
maiorias de "geometria variável" no legislativo, que lhe
permitam continuar a operar. É isso legítimo ou é
"corrupto"? De acordo com muita da filosofia constitucional liberal,
sublinhemo-lo aqui, é perfeitamente legítimo: é,
aliás, uma forma por excelência de travão ao
possível abuso de poderes; ao poder absoluto (que, como também se
sabe, "corrompe absolutamente", lembram-se?) Mas é
inegável que fatores diversos, de índole pessoal e sempre
difíceis de julgar não se aferindo caso a caso, permitem e
propiciam o resvalar do "presidencialismo de coligação"
para o chamado "presidencialismo de corrupção".
Está-se já a começar a ver o oceano de problemas que tudo
isto suscita?
Ah, mas não importa. O que importa é pôr o pessoal na rua,
a gritar "Fora Dilma!", assumindo-a como corrupta e corruptora em
sumo grau, até prova em contrário. Tudo isto dando no fim, como
se sabe, em
impeachment.
Mas o
impeachment,
diz a Constituição brasileira, obriga a constituir Dilma como
acusada dum determinado crime; e crime muito grave mesmo, porque sem ele fica
impossibilitado o
impeachment
, precisamente em nome da tal separação (e equilíbrio, ou
contrapeso recíproco) de poderes que supostamente se pretende
salvaguardar. Mas houve tal acusação? Não houve. Mas
então, temos de concluir, não foi
impeachment
legítimo; então foi golpe, não é assim? Bom, mais
uma vez: j á não importa. O que importa é que o golpe
resultou, por meio das tais acusações de corrupção
feitas à presidente e muito para além delas. Aproximadamente o
mesmo, acrescente-se, com Fernando Lugo, no Paraguai; e com Manuel Zelaya, nas
Honduras. Fernando quê? Manuel quê? Já se vê que
sequência tiveram todas estas histórias, e que importância
lhe deram os nossos media. Pois é: são assim mesmo, os
nossos
media. Serão eles
o quê exatamente? Corruptos?
Mudemos agora de ambiente: das "altas esferas" da vida
política, para o funcionamento corriqueiro da "máquina do
Estado". Funcionalismo público inoperante e "
state failure
" são, em países pobres, ameaça quase sempre presente
e muito próxima. Algures num país da África Subsaariana,
um agente da polícia manda parar o automóvel, implicando depois
com tudo e mais alguma coisa
até ao momento decisivo em que opta
por pedir diretamente a "propina", ou seja, a "ajuda"
monetária que constitui, em certas circunstâncias, mesmo a
única coisa que permite continuar a circular na via pública.
Noutro contexto, há um visto de saída do país que deveria
obter-se em duas semanas, mas afinal só se obtém em dois
meses
exceto, é claro, se nos dirigirmos ao guichet do andar
acima, o qual opera em regime de "parceria público-privada" e
permite, contra pagamento adicional, obter o referido visto em dis dias, ou
mesmo em duas horas
São corruptos estes agentes de polícia
e estes funcionários? Bom, se eu e o leitor tivéssemos os
ordenados desvalorizados pela inflação, como eles em determinado
momento tiveram, que acabaríamos nós por fazer, mais tarde ou
mais cedo? É melhor nem ter de pensar nisso, não é? A
"corrupção" é portanto, nestes casos, mais do
que assunto para preleções morais, sintoma claro de
state failure
iminente. Quando o Estado não provê os bens públicos que
devia prover, eles acabam por surgir, por via de "parcerias
público-privadas" de vária ordem, e com múltiplas e
diversas consagrações institucionais.
Mas regressemos agora dos níveis inferiores da "máquina do
Estado" num país da África Subsariana para as "altas
esferas" da vida política dum país europeu e ocidental:
Portugal, por exemplo. As designações "Brisa",
"Autoestradas do Atlântico", "Mello Saúde",
"Lusoponte" (entre tantas outras possíveis) dir-nos-ão
algo? E se sim, o quê? Corrupção? Falência do Estado?
Viés percetivo doutrinário? Ideologia? Como se vê, assunto
para amplos debates. Não seria melhor discutir tudo isso, e a
propósito de nós, portugueses, em vez de passar o tempo a
pretender (do ponto de vista do presumido "espectador imparcial"
universal) pregar moral aos angolanos? E já nem quero alongar-me mais,
porque o artigo já está mesmo enorme, a discutir o estatuto de
inimputabilidade reconhecido pela República de Angola, em perpetuidade,
a José Eduardo dos Santos. Valerá a pena, quanto a isso, pensar
no que aconteceu a Milosevic? Ou contrapor a essas medidas tudo o que,
implícita ou explicitamente, fica por exemplo configurado em Portugal
pela própria existência duma "Fundação
Mário Soares"?
São mesmo tão estranhos, bárbaros e corruptos os usos e
costumes dos "nativos", não são?
01/Setembro/2017
[*]
Economista e sociólogo, professor do ISEG e investigador do SOCIUS,
Universidade de Lisboa
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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