Esfaimar a Venezuela para levá-la à submissão
Vocês são tão bondosos! Derramei uma lágrima ao
pensar na generosidade americana.
"Tantas iguarias deliciosas: sacos de arroz, atum em lata e biscoitos
ricos em proteínas, flocos de milho, lentilha e macarrão,
chegaram à fronteira da conturbada Venezuela o suficiente para
uma refeição leve para cada cinco mil pessoas",
relatavam os noticiários numa sublime referência a cinco mil
pessoas alimentadas pelos peixes e pães de Cristo.
É verdade que Cristo não apresou as contas bancárias e
não apreendeu o ouro daqueles que ele alimentava. Mas a Venezuela do
século XXI é bem mais próspera que a Galileia do
século I. Nos dias de hoje, é preciso organizar um bloqueio se
quiser que as pessoas fiquem gratas pela sua ajuda humanitária.
Isso não é um problema. A dupla EUA-Reino Unido fez isso no
Iraque, como escreveu a maravilhosa
Arundhati Roy
em Abril de 2003 (no
Guardian
de antigamente, antes de se tornar uma ferramenta imperial): Depois de o
Iraque ter sido posto de joelhos, seu povo morreu de fome, meio milhão
dos seus filhos foram mortos, sua infra-estrutura seriamente danificada... o
bloqueio e a guerra foram seguidos por... adivinhou! Ajuda humanitária.
A princípio, eles bloquearam o fornecimento de alimentos no valor de
milhares de milhões de dólares, e a seguir entregaram 450
toneladas de ajuda humanitária e celebraram sua generosidade com alguns
dias de transmissões de TV ao vivo. O Iraque tinha dinheiro suficiente
para comprar toda a comida de que precisava, mas estava bloqueado e o seu povo
recebia apenas alguns amendoins.
E isso era bastante humano pelos padrões americanos. No século
XVIII, os colonos britânicos na América do Norte usaram
métodos mais drásticos enquanto distribuíam ajuda a
nativos desobedientes. Os índios peles vermelhas foram expulsos de seus
lugares de origem e então receberam ajuda humanitária: whiskey e
cobertores. Os cobertores haviam sido anteriormente
usados por pacientes com varíola
. A população nativa da América do Norte foi dizimada
pelas epidemias decorrentes desta medida e de semelhantes. Provavelmente
você não ouviu falar deste capítulo da sua história:
os EUA têm muitos museus do Holocausto, mas nenhum memorial ao
genocídio feito em casa. É muito mais divertido discutir as
faltas de alemães e turcos do que dos seus próprios antepassados.
Primeiro, você passa esfaima o povo; a seguir traz-lhe ajuda
humanitária. Isso foi
proposto
por John McNaughton no Pentágono: o bombardeamento de diques e
barragens, ao inundar campos de arroz, provoca fome generalizada (mais de um
milhão de mortos?) "E então entregaremos ajuda
humanitária aos famintos vietnamitas". Ou antes,
"poderíamos oferecer-lhes isso na mesa de conferência".
Planear um milhão de mortes por inanição, por escrito: se
um escrito assim fosse encontrado nas ruínas do Terceiro Reich isso
selaria a história de genocídio, seria citado diariamente. Mas a
história do genocídio dos vietnamitas raramente é
mencionada hoje em dia.
Eles também fizeram isso na Síria. No início, entregaram
armas para todo extremista muçulmano, a seguir bloquearam Damasco e
então enviaram alguma ajuda humanitária, mas só para as
áreas sob o controle rebelde.
Esse método cruel, mas eficiente, de quebrar o espírito das
nações foi desenvolvido por domadores de leão durante
anos, talvez durante séculos. Você tem de esfaimar a fera
até que ela venha tomar a comida das suas mãos e lamber seus
dedos. 'Desnutrição-domesticação', chamam a isto.
Os israelenses praticam o mesmo método em Gaza. Eles bloqueiam toda a
exportação ou importação da Faixa, proíbem a
pesca no Mediterrâneo e alimentam a conta-gotas os palestinos em
cativeiro através de "ajuda humanitária". Judeus, sendo
judeus, fazem isto melhor: fizeram com que a UE pagasse a ajuda
humanitária para Gaza E comprasse a ajuda a Israel. Isso fez de Gaza uma
importante fonte de lucro para o Estado judeu.
Assim, na Venezuela, eles seguem um roteiro antigo. Os EUA e seu caniche
londrino apreenderam mais de 20 mil milhões de dólares da
Venezuela e de empresas nacionais venezuelanas. Eles roubaram mais de mil
milhões de lingotes de ouro que de modo confiante a Venezuela depositou
nos cofres do Banco da Inglaterra.
Bem, eles disseram que darão esse dinheiro para um venezuelano qualquer,
de preferência. Para o sujeito que já prometeu dar a riqueza da
Venezuela para as empresas americanas. E após este roubo à luz do
dia, eles trouxeram alguns contentores de ajuda humanitária até
à fronteira e esperam pela correria por comida de venezuelanos
destituídos.
O secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo,
twittou
:
"O povo venezuelano precisa desesperadamente de ajuda humanitária.
Os EUA e outros países estão a tentar ajudar, mas os militares da
Venezuela sob as ordens de Maduro estão bloqueiam a ajuda com
camiões e navios-tanque. O regime de Maduro deve PERMITIR QUE A AJUDA
ALCANCE O POVO FAMÉLICO".
Os venezuelanos não estão a morrer de fome, apesar de
atravessarem dificuldades. O maior barulho é feito pelos ricos, como
sempre. Se Pompeo quiser ajudar os venezuelanos, ele pode suspender as
sanções, devolver os fundos e levantar o bloqueio. Os biscoitos
que ele quer fornecer são de pouca valia.
O presidente Maduro está certo quando se recusa a deixar essa hipocrisia
subornar os estômagos e os corações de seu povo. Não
é só ele que se lembra de seu Virgílio e sabe,
Timeo danaos e dona ferentes
, "cuidado com gregos que dão presentes". Há
demasiados soldados americanos e colombianos em torno do local da entrega
pendente, e este lugar é suspeitamente próximo a um aeroporto com
uma pista extra-longa adequada para uma ponte aérea.
Os EUA são conhecidos pela sua propensão para invadir seus
vizinhos: o Panamá foi invadido em 1989 a fim de manter o Canal do
Panamá em mãos americanas e reverter o acordo assinado pelo
bem-intencionado presidente Jimmy Carter. O presidente George W. Bush enviou
suas tropas aerotransportadas depois de chamar o presidente do Panamá de
"ditador e contrabandista de cocaína". É exactamente o
mesmo que diz o presidente Trump acerca do presidente da Venezuela.
Eles provavelmente usarão essa ajuda para invadir e subornar a
Venezuela. Sabiamente, Maduro começou grandes exercícios
militares a fim de preparar as forças armadas para o caso de
invasão. A situação da Venezuela é bastante
terrível o suficiente, mesmo sem invasão. Seu dinheiro foi
apresado, sua principal companhia de petróleo é torna-se
inútil quando confiscada; e há uma forte quinta coluna à
espera dos ianques em Caracas.
Esta quinta coluna é composta principalmente por
compradores,
jovens ricos com conhecimento e educação ocidental, que
vêem seu futuro no âmbito do Império Americano. Eles
estão prontos para trair as massas destituídas e para convidar as
tropas dos EUA a entrarem. Eles são apoiados pelos super-ricos, por
representantes de empresas estrangeiras, pelos serviços secretos
ocidentais. Essas pessoas existem por toda parte; elas tentaram organizar a
Revolução Gucci no Líbano, a Revolução Verde
no Irão, o Maidan na Ucrânia. Na Rússia, eles tiveram sua
oportunidade no Inverno de 2011/2012, quando a sua
Revolução da Capa de Vison
foi jogada no Bolotnaya Heath, em Moscovo.
Em Moscovo, eles perderam quando seus oponentes, o partidários do Russia
First, efectuaram uma
manifestação
muito maior em Poklonnaya Hill. As agências de notícias
ocidentais tentaram encobrir a derrota divulgando fotos da
manifestação dos apoiantes de Putin e dizendo que ela
favorável ao Ocidente. Outras agências ocidentais publicaram fotos
de comícios de 1991 dizendo que haviam sido tiradas em 2012. Em Moscovo,
ninguém se deixou enganar: a multidão do vison sabia que estavam
derrotados.
Na Ucrânia, eles venceram, pois o presidente Yanukovich, um homem
hesitante, pusilânime e dividido, não conseguiu reunir apoio
maciço. É uma grande questão se Maduro será capaz
de mobilizar as massas. Se o fizer, irá também vencer a
confrontação com os EUA.
Maduro é um tanto reservado; ele não disciplinou os oligarcas
indisciplinados; ele não controla os media; ele tenta jogar um jogo
social-democrata num país que está longe de ser a Suécia.
Seus subsídios permitiram que as pessoas comuns escapassem da extrema
pobreza, mas agora são usados pelos aproveitadores do mercado negro para
sugar a riqueza da nação. Longe de ser uma zona de desastre, a
Venezuela é uma verdadeira Bonança, um verdadeiro Klondike:
você pode encher um camião-cisterna com gasolina por centavos,
contrabandeá-la para a vizinha Colômbia e vendê-la a
preço de mercado. Muitos adeptos dos sujeitinhos fizeram pequenas
fortunas dessa maneira, e esperam fazer grandes se e quando os americanos
vierem.
Um problema maior é que a Venezuela se tornou uma economia de
monocultura: exporta petróleo e importa todo o resto. Nem sequer produz
comida para alimentar seus 35 milhões de habitantes. A Venezuela
é uma vítima da doutrina neoliberal, a qual afirma que se pode
comprar o que não puder produzir. Agora eles não podem comprar e
não produzem. Imagine uma Arábia Saudita democrática
atingida pelo bloqueio.
A fim de salvar a economia, Maduro deveria drenar o pântano, acabar com o
mercado negro e especulativo, incentivar a agricultura, tributar os ricos,
desenvolver alguma indústria para o consumo local. Isto pode ser feito.
A Venezuela não é um estado socialista como Cuba bem ordenada,
nem uma social-democracia como a Suécia e a Inglaterra nos anos 70, mas
mesmo seu muito modesto modelo para permitir que as massas se levantem da
miséria, pobreza e ignorância parecem demasiado para o Ocidente.
Diz-se muitas que existem dois antagonistas no Ocidente, os populistas e os
globalistas, e que o presidente Trump é o líder populista. A
crise na Venezuela provou que estas duas forças estão unidas se
houver uma oportunidade de atacar e roubar um país estrangeiro. Trump
é condenado internamente quando chama suas tropas de volta do
Afeganistão ou da Síria, mas ganha apoio quando ameaça a
Venezuela ou a Coreia do Norte. Ele pode estar certo de que será
aplaudido por Macron e Merkel e até mesmo pelo
The Washington Post
e pelo
The New York Times.
Ele tem as armas de destruição em massa reais, as armas de engano
em massa, para atacar a Venezuela, e essas armas de destruição em
massa foram activadas com o arranque do golpe arrepiante. Quando um jovem
político desconhecido, o líder de uma pequena
fracção neoliberal raivosamente pró-americana no
Parlamento, Random Dude, reivindicou o título de presidente, ele foi
imediatamente reconhecido por Trump e os media ocidentais informaram que o povo
da Venezuela saiu em manifestações em massa para saudar o novo
presidente e exigir a remoção de Maduro.
Eles transmitiram vídeos de enormes manifestações a
ocorrerem outra vez em Caracas. Não muitos espectadores no exterior
perceberam que o vídeo era antigo, filmado em
manifestações de 2016, mas os venezuelanos viram isso
imediatamente. Eles não foram enganados. Eles sabiam que não
há possibilidade de uma grande manifestação de protesto
naquele dia, o dia de um jogo de beisebol particularmente importante na liga
profissional entre os Leones de Caracas e os Cardenales de Lara de Barquisimeto.
Mas as armas de destruição em massa continuavam a mentir. Aqui
está uma notícia do
Moon of Alabama
: os relatos de grandes comícios contra o governo são
notícias falsas ou profecias com a pretensão de se tornarem
auto-realizáveis:
Isso foi às 7h10, hora local, em Caracas, várias horas antes da
manifestação. Tal "reportagem previsional" é
agora supostamente passa a ser "notícia". Um pouco mais tarde,
a Agência France Presse postou um vídeo:
Agência de notícias AFP @AFP -
15:50 utc - 2 fev 2019 ?>
VÍDEO: Milhares de manifestantes da oposição afluem
às ruas de Caracas para apoiar o líder da oposição
na Venezuela, Juan #Guaido, o qual está a apelar a
eleições antecipadas, à medida que aumenta a
pressão internacional sobre o presidente Nicolas Maduro para se demitir.
Isso foi às 11h50, hora local. O
vídeo em anexo
não mostra
"milhares", mas cerca de 200 pessoas a circularem.
Eles mentem quando dizem que há desertores do exército à
procura de um combate com as forças armadas. Os jovens que a CNN
apresentou não eram desertores e não moravam na Venezuela.
Até mesmo suas insígnias militares eram de i, tipo descartado
anos atrás, como
notou
nosso amigo The Saker.
No entanto, essas mentiras não vão ajudar meus
correspondentes em Caracas informam que há manifestações a
favor e contra o governo (para Maduro multidões um pouco maiores), mas
os sentimentos não são fortes. A crise é fabricada em
Washington e os venezuelanos não querem ser envolvidos.
É por isso que podemos esperar uma tentativa americana de usar a
força, precedida por alguma provocação. Provavelmente
não será uma guerra total: os EUA nunca combateram um inimigo que
não estivesse exausto antes do confronto. Se o governo Maduro sobreviver
ao golpe, a crise será discreta, até que as sanções
façam seu trabalho e minem ainda mais a economia.
Nesta luta, o presidente Trump é o seu próprio grande inimigo. Ele
busca a aprovação do Partido da Guerra e a sua própria
base ficará decepcionada com suas acções. Suas
sanções enviarão mais refugiados para os EUA, com muro ou
sem muro. Ele debilita o status único do dólar americano ao
utilizá-lo como arma. Em 2020 colherá o que semeou.
13/Fevereiro/2019
[*]
adam@israelshamir.net
.
O original encontra-se em
The Unz Review
e em
www.informationclearinghouse.info/51102.htm
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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