No distante ano de 2013, tive contato com o artigo de Domenico Losurdo "
Como nasceu e como morreu o 'marxismo ocidental
". Nele, Losurdo observa a certa altura como Michael Hardt e Antonio Negri
afirmam que os palestinos podem contar com a simpatia deles, mas que, a partir
do momento em que a libertação nacional palestina for
conquistada, quando for construído o Estado nacional, não se pode
mais estar do "lado deles". Ao ler esse trecho imediatamente pensei:
ninguém em sã consciência deve concordar com isso. Imaginei
ser um raciocínio por demais infantil crer que só podemos apoiar
um povo oprimido no seu momento de máxima opressão e, quando esse
povo começar a construir sua emancipação o objetivo
da luta , o encanto se acaba.
Eu estava errado. No ano seguinte, ainda cursando História na UFPE
(Universidade Federal de Pernambuco), eu conversava com um professor que me
disse ter participado quando jovem de protestos contra a Guerra do
Vietnã. A pergunta imediata que lhe fiz foi a respeito da
situação do bravo país asiático hoje. A resposta
não poderia ser mais chocante: "não sei, depois que eles
conseguiram derrotar os Estados Unidos, houve um processo de
burocratização com a construção do Estado Nacional,
deixou de ser um processo revolucionário".
A resposta do meu antigo professor, longe de ser uma compreensão
particular, exprime o espírito de nosso tempo: o Vietnã só
interessava quando era a encarnação máxima e mais brutal
da opressão, uma espécie de representação
asiática da fábula bíblica de Davi contra Golias; mas
depois da libertação, quando a prioridade da luta anticolonial e
anti-imperialista passa a ser a construção econômica e a
institucionalização da descolonização, a luta perde
o seu charme.
Em 2018, a Boitempo lançou no Brasil o livro
O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer
. O marxista italiano trabalha vários problemas nesse livro, mas dois
são os que mais nos interessam nessa reflexão. Primeiro, Losurdo
aponta como uma tendência de longo prazo do que chama de "marxismo
ocidental" sem o tom elogioso normalmente atrelado ao termo
a exclusão da reflexão sobre a questão nacional e
colonial. Com análises rápidas, mas profundas, coloca em
revisão a obra de uma série de pensadores como Adorno,
Horkheimer, iek, Althusser e muitos outros, para demonstrar sua
tese.
Ao mesmo tempo, nomes como Jean-Paul Sartre e Herbert Marcuse, intelectuais
europeus que dedicaram grande atenção política e
teórica a luta dos Condenados da Terra, são criticados por uma
espécie de absolutização do momento da resistência
como oprimidos. Losurdo classifica o anticolonialismo de Sartre como populista
e idealista. Não tenho certeza se concordo com essa
caracterização de Sartre, mas vale a pena ler as palavras do
italiano:
"Concentrando sua atenção apenas no esforço
desesperado dos "condenados da terra" para romper as correntes da
escravidão colonial e reservando sua simpatia exclusivamente para o
grupo em fusão, protagonista do momento mágico, mas breve, da
revolução, aquele entusiasmo gera responsável pela
destruição de um antigo regime universalmente odiado, Sartre
é o defensor de um anticolonialismo certamente apaixonado e
meritório, mas que ao mesmo tempo é, contudo, populista e
idealista. É um anticolonialismo que não consegue compreender a
fase da revolução empenhada na construção da nova
ordem." (
O marxismo ocidental
, p. 115)
Esse argumento será o fio condutor de nossa reflexão.
A Palestina é um exemplo de colonialismo clássico
. Ocupação militar direta, regime de segregação
racial, papel central das forças repressivas como mediação
de controle, desumanização e animalização do povo
oprimido e produção política-ideológica do
colonizador como um ser superior que quer apenas viver sua vida, mas os
bárbaros, o Outro violento, não permitem e, portanto, suas
ações coloniais são apenas a defesa do seu "estilo de
vida". Mas há muito tempo sabemos que existem várias formas
de dominação colonial-imperialista. É possível que
um povo se liberte da ocupação militar direta do colonizador e
continue dominado sob um regime classicamente denominado
neocolonial.
A independência política, caso não acompanhada do
desenvolvimento de um aparato produtivo, científico e técnico
desenvolvido, além de uma capacidade de defesa efetiva da nova ordem,
torna-se apenas formal. Um exemplo bastante ilustrativo é a
situação de vários Estados africanos e sua
dependência neocolonial à França. Esses Estados africanos,
por exemplo,
até hoje não têm um Banco Central e é a França que controla a emissão de suas moedas
.
Vários pensadores revolucionários, como Frantz Fanon, Ho Chi
Minh, Mao Tsé-Tung, Amílcar Cabral etc., perceberam que a
independência política, ou a emancipação nacional
formal, pode se tornar uma hábil armadilha do imperialismo. Quando a
Revolução Chinesa triunfou complemente em 1949, o imperialismo
estadunidense flertou com a ideia de atacar o país com bombas
atômicas e reduzi-lo a um grande nada, mas logo as mentes astutas do
Império passaram a uma estratégia mais realista. Conscientes da
pouca experiência dos comunistas na administração da
economia urbana e cientes das próprias dificuldades de
reconstrução do país devastado por décadas de
ocupação colonial e guerras, os Estados Unidos passaram a aplicar
uma série de bloqueios econômicos, sabotagens, pressões
diplomáticas e cercos de todo tipo. Era necessário impedir com
todas as forças o desenvolvimento econômico para tornar a
revolução anticolonial e socialista uma casca vazia.
Quando o desenvolvimento econômico da nação
revolucionária não é totalmente impedido, o imperialismo,
via de regra, parte para uma estratégia de cerco e isolamento mundial,
transformando o país em uma espécie de pária do mundo.
Enquanto existia campo socialista, União Soviética e movimento
terceiro-mundista, a eficácia dessa estratégia de isolamento era
relativa. Mas, como sabemos, desde o início dos anos 1990 o
terceiro-mundismo e o comunismo foram derrotados. Os povos que ousam ser livres
estão mais sozinhos do que nunca.
Mas e a Coreia?
Agora podemos começar a falar da República Popular
Democrática da Coreia, normalmente chamada de Coreia do Norte. Mas falar
da Coreia Popular, na conjuntura brasileira, significa antes de mais nada
chamar atenção para dois aspectos. O primeiro é a nossa
ignorância não só sobre o país como sobre o
continente asiático de maneira geral. Repare: nas universidades
brasileiras, os centros de estudo sobre a Ásia, como o que existe na
UFPE, são raríssimos. A oferta de disciplinas sobre o tema
também é algo bastante difícil de encontrar. A
exceção vem sendo o crescimento do interesse pela China
como o trabalho incrível do LabChina da UFRJ (Universidade Federal do
Rio de Janeiro). Retrocedendo um pouco mais, na escola, os professores
não estão preparados para trabalhar história da
Ásia e nos livros didáticos em geral ainda predomina a
perspectiva eurocêntrica da história, de forma que a Ásia
comparece no conteúdo didático apenas como elemento para contar a
história europeia (como a expansão imperialista do século
XIX).
No mercado editorial a situação não é melhor. O
número de autores asiáticos consumidos na cultura brasileira
é reduzidíssimo. Quando publicados, como no caso dos sul-coreanos
Ha-Joon Chang e Byung-Chul Han, são autores com produção
teórica ocidentalizada. Estudiosos acadêmicos da Ásia de
grande importância, como o norte-americano Bruce Cumings, não
têm tradução para o português. Também
não preciso falar muito sobre a ausência de
publicação das reflexões de intelectuais da Coreia Popular
sobre os rumos do seu próprio país. Em suma, somos dominados por
um
colonialismo cultural
de base eurocêntrica que condiciona o nosso conhecimento para um
estranhamento/desconhecimento não só da África e da
Ásia, como de nosso próprio território a
Amérca Latina.
A despeito disso, quase todos os militantes de esquerda no Brasil têm uma
opinião negativa sobre a Coreia Popular. Quem forma essa opinião?
Os monopólios de mídia. É necessário refletir com
mais profundidade sobre a produção dessas notícias. No
geral, sobre os monopólios de mídia nativos, sabemos que
pertencem a um pequeno número de famílias e têm
ramificações com diversos negócios capitalistas e com
partidos e políticos da ordem. Mas e quanto às notícias
internacionais? Como elas são produzidas? Domenico Losurdo, no seu
livro
Democracia ou Bonapartismo
, cita um dado do final dos anos 1990 muito interessante:
"O mercado da informação é quase monopólio de
quatro agências: Associated Press e United Press (Estados Unidos),
Reuters (Grã-Bretanha) e France Press. Todas as rádios, todas as
cadeias de televisão, todos os jornais do mundo compram os
serviços destas agências. 65% das
"informações" mundiais partem dos Estados Unidos".
(Latouche
apud
Losurdo, 2004, p. 280-281)."
Recentemente, fui buscar dados atualizados sobre as famigeradas Agências
de Notícias tema pouco falado, mas de fundamental
importância para entender a disputa pela hegemonia no mundo. Hoje apenas
três agências de notícia controlam o mercado global de
"informações". Associated Press (EUA), Agence
France-Presse (França) e Reuters (Inglaterra, mas como escritório
principal em Nova York). Essas três agências têm um poder
tão grande que "um estudo sobre a cobertura da guerra na
Síria por nove dos principais jornais europeus ilustra claramente essas
questões: 78% de todas as publicações foram baseadas,
completa ou parcialmente, em notícias de agências e 0% em pesquisa
investigativa". Ou seja, é de Paris, Londres e Nova York que
são distribuídas as "notícias internacionais"
sobre o mundo. Alguém pode argumentar que essa
concentração monopólica não significa que a
qualidade em si das notícias seja ruim.
Vejamos a questão mais de perto. O estudo que acompanhamos mostra como
as agências de notícia são onipresentes no jornal, na TV,
no rádio, nos portais da internet e afins. Normalmente, esses
veículos de comunicação não citam suas fontes, mas
elas são essas agências. Se alguma das três grandes
não noticia um acontecimento, ele se torna de automático um
não-acontecimento. Mas e os correspondentes internacionais? No geral,
são poucos ou inexistentes- e quando atuam, não têm
capacidade de oferecer um volume de informações como essas
agências.
Também não é raro encontrar correspondentes internacionais
que mal dominam o idioma local ou que não têm qualquer bagagem
intelectual sobre o país. Sua função, no geral, é
servir de elo entre a agência de notícias e a
redação da empresa no qual são empregados, ou aparecer ao
vivo no local de modo a emprestar um ar de maior credibilidade à
notícia produzida. O ambiente construído não permite
muitos questionamentos sobre a versão oficial dos fatos. Algumas pessoas
poderiam pensar que isso está relacionado apenas aos interesses
privados, comerciais e financeiros envoltos na questão. Na realidade,
não é só isso.
"Entre os atores mais ativos em 'plantar' notícias
geopolíticas questionáveis
estão os ministérios militares e de defesa. Em 2009, por exemplo,
o chefe da agência de notícias americana AP, Tom Curley, divulgou
que
o Pentágono emprega mais de 27 mil especialistas em RP
que trabalham na mídia circulando manipulações
direcionadas, com um orçamento anual de quase 5 bilhões de
dólares. Não obstante, generais de alto escalão dos EUA
ameaçaram "arruinar" a AP e o Tom Curley caso os jornalistas
cobrissem criticamente demais o exército dos EUA. Apesar ou
por causa? de tais ameaças dos militares, nossos meios de
comunicação publicam, regularmente, informações
duvidosas com base em 'informantes' não identificados dos
'círculos de defesa dos EUA' [
] Obviamente, os serviços de
inteligência também possuem um grande número de contatos
diretos na nossa mídia, os quais podem 'vazar' informações
se necessário. Porém, sem o papel central das agências de
notícias globais, a sincronização mundial de propaganda
hegemônica e de desinformação nunca seria tão
eficiente. Por meio do 'multiplicador de propaganda', histórias e
informações suspeitas de especialistas em RP que trabalham
para governos, militares e serviços de inteligência chegam
ao público em geral praticamente sem serem checadas ou filtradas. Isto
é, os jornalistas citam as agências de notícias, e as
agências de notícias citam as suas fontes; embora, muitas vezes,
os jornalistas tentem apontar incertezas com termos como 'aparente', 'alegado'
e similares para se protegerem, embora a essa altura o boato já se
espalhou para o mundo e causou seu efeito".
[1]
A informação é uma questão de poder político
e geopolítico, tratada como razão de Estado pelo imperialismo
mundial. Com o sucesso das interpretações reformistas da obra de
Antônio Gramsci, passou a se tratar a luta pela hegemonia (isto é,
a disputa pela direção moral e intelectual da sociedade a partir
de aparelhos 'privados' de hegemonia), como algo que se realizaria a partir de
condições democráticas: uma espécie de
competição mais ou menos igual entre as classes exploradas e
burguesas na disputa pela hegemonia.
[2]
Nada mais falso.
Junte o orçamento de todos os aparelhos de hegemonia das classes
populares brasileira que se dedicam ao jornalismo: esse montante não vai
chegar nem perto dos 5 mil milhões de dólares gastos pelo
Pentágono para propagar as notícias "adequadas". A
despeito disso, há uma estranha lógica na militância de
esquerda brasileira: repetem como mantra que a "Globo ou a mídia no
geral mentem", mas acreditam piamente nas "notícias
internacionais" estilo Assad usando armas químicas contra civis
quando a guerra estava quase ganha, Venezuela prendendo crianças, Cuba
torturando opositores, Kaddafi bombardeando civis com caças
aéreos etc, etc, etc.
No caso da Coreia Popular, a ação dos monopólios de
mídia é ainda mais brutal. O país é provavelmente o
mais caricaturado do mundo. Volta e meia, aparece nos monopólios de
mídia com amplo destaque alguma notícia fantástica sobre a
Coreia Popular: o "ditador" Kim Jong-Um teria forçado todos os
habitantes do país a usar o mesmo corte de cabelo; arqueólogos
norte-coreanos descobriram a existência de unicórnios; os
cidadãos acreditam que a Coreia ganhou a Copa de 2014; Kim Jong-Un
mantou matar o tio com um lança mísseis porque ele dormiu numa
reunião (minha preferida!); Kim mandou matar a namorada porque ela
falava muito e assim segue. Poucos dias depois, é claro, os
supostos mortos aparecem vivos
e as notícias falsas, muitas vezes propagandeadas pelo Serviço
Secreto da Coreia do Sul, não desmentidas são 1% da publicidade
da mentira original.
O anticomunismo se combina com o orientalismo e o racismo colonial (só o
racismo colonial para fazer uma pessoa achar crível um líder de
Estado matar seu tio com um lança mísseis porque dormiu numa
reunião ou que na Coreia existe um canibalismo onipresente, imagens
típicas da representação europeia da Ásia durante a
expansão colonial-imperialista do final do século XIX) para fazer
da Coreia do Norte um dos países mais atacados do mundo e um
pária que quase ninguém no campo intelectual brasileiro abre a
boca para defender. Malcolm X disse certa vez que "se você
não for cuidadoso, os jornais farão você odiar o oprimido e
amar o opressor". Nesse caso, as mídias no geral, incluindo os
jornais, já conseguiram fazer isso com militantes pouco
"cuidadosos".
O que você deveria saber sobre a Coreia Popular, mas não sabe
O importante intelectual canadense Michel Chossudovsky, escreveu um
artigo
falando sobre as conquistas sociais da Coreia Popular. Usando apenas
dados oficiais de fontes ocidentais (esquivando-se assim da eventual
"acusação" de fazer apologia ao "regime" por
usar dados produzidos no próprio país), o pesquisador
começa mostrando que o relatório da Anistia Internacional que
indica uma crise na saúde da Coreia Popular e uma sistemática
falta de médicos e enfermeiros é falso. Diz o trecho:
"A Organização Mundial da Saúde (OMS) diz que o
relatório da Anistia Internacional sobre o sistema de saúde da
Coreia do Norte não é científico e está
desatualizado. A Anistia afirmou que a Coreia do Norte não está
conseguindo atender às necessidades básicas de saúde de
seu povo. O relatório da Anistia é baseado em entrevistas com 40
desertores norte-coreanos e profissionais da saúde estrangeiros. Em
abril, a diretora da OMS [Organização Mundial da Saúde]
visitou a Coreia do Norte e disse que seu sistema de saúde era o motivo
de inveja pelo mundo em desenvolvimento".
Qual seria o motivo da inveja? Chossudovsky cita os dados da Divisão
Federal de Pesquisas da Biblioteca do Congresso dos EUA, que afirma
"A Coreia do Norte tem um serviço médico nacional e um
sistema de seguro de saúde. Em 2000, cerca de 99% da
população tinha acesso a saneamento e 100% tinham acesso à
água, mas a água nem sempre era potável. O tratamento
médico é gratuito. No passado, havia um médico para cada
700 habitantes e uma cama de hospital para cada 350 habitantes."
O acesso a água e saneamento, na Coreia Popular, é melhor que no
Brasil e que na maioria dos países asiáticos (lugar por
excelência de comparação com a situação da
Coreia). A relação de médicos e leitos por número
de habitantes também é melhor que a nossa. Ainda no âmbito
da exposição de dados, diz o pesquisador "em 2006, a
expectativa de vida era estimada em 74,5 anos para mulheres e 68,9 para homens,
ou quase 71,6 anos no total" (esses números não combinam com
o retrato de um país tão sem comida ao ponto de existir um
suposto canibalismo onipresente. É necessário lembrar que pessoas
sem comida não vivem em média até os 71 anos). E, para
concluir, Michel Chossudovsky fala sobre a educação na Coreia
Popular:
"Segundo a Unesco, a educação pública na
República Democrática Popular da Coreia (RPDC) é universal
e totalmente financiada pelo Estado. De acordo com fontes oficiais do governo
americano (Divisão Federal de Pesquisa da Biblioteca do Congresso):
"A educação na Coreia do Norte é, há 11 anos,
gratuita, obrigatória e universal dos quatro aos 15 anos de idade nas
escolas estatais. A taxa nacional de alfabetização para os
cidadãos com 15 anos de idade ou mais é de 99%." (
Biblioteca do Congresso, Divisão Federal de Pesquisa
, p. 7).
Em 2013, a
Vice
realizou uma entrevista
com Pier Luigi Cecioni, curador responsável pelo site ocidental do
Estúdio de Arte Mansudae, em Pyongang (capital da Coreia Popular),
provavelmente um dos estúdios com maior produção no mundo.
A matéria aborda o realismo socialista na Coreia Popular e o papel do
Mansudae, que tem quatro mil funcionários e mais de mil artistas.
Cecion, respondendo às perguntas da jornalista Nadja Sayej,
começa explicando a produção cultural na Coreia:
"A maioria dos melhores artistas do país está no Mansudae.
Praticamente todos eles têm um curso universitário ou
formação em belas-artes. Quando um estudante se destaca na
universidade, ele ou ela é convidado a se juntar ao Mansudae. E se um
artista se destaca em outro centro, ele ou ela pode ser convidado a entrar para
o estúdio. É uma grande honra fazer parte do Mansudae."
Em seguida, o italiano, deixando claro não ser especialista no tema,
descreve o que sabe do sistema educacional do país, afirmando que as
crianças e adolescentes frequentam a escola pela manhã e no
período da tarde, voluntariamente, podem praticar música,
dança, teatro, esportes etc (bem pouco parecido, infelizmente, com as
escolas do Brasil). Responde perguntas sobre a experiência da visita dos
coreanos à Europa e conclui com um balanço sobre o realismo
socialista na Coreia Popular:
"Eu não diria que o propósito de toda a arte norte-coreana
seja mensagem política. O realismo socialista representa a Coreia do
Norte sob uma luz positiva e, num sentido mais amplo, quer inspirar os
espectadores a ter sentimentos positivos, patrióticos e a celebrar;
especialmente as grandes esculturas e pinturas exibidas em espaços
públicos: os líderes. Os temas estão frequentemente
relacionados ao trabalho, um assunto que não é comum no ocidente.
Uma forma particular do realismo socialista são os cartazes. Eles
são pintados à mão, não impressos, e têm
mensagens políticas e sociais. Muitos têm como alvo os Estados
Unidos, visto como um agressor do passado e um agressor em potencial.
Além do realismo socialista, pinturas de paisagens são muito
populares. Assim como pinturas de flores e da natureza em geral. Há
também muitos retratos, principalmente de trabalhadores. Mas há
tantos tipos de arte escultura, cerâmica, bordado, vários
tipos de pintura, xilografia, caligrafia e algumas outras que não
é possível generalizar".
O professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Paulo
Ferracioli, especialista em política de comércio exterior e com
vasta experiência de pesquisa sobre a Coreia do Sul, fez uma viagem
à Coreia Popular. Em seu
relato de viagem
, o professor, que não é nenhum fã da ideologia Juche, diz
que as cidades são limpas, bem organizadas e que em uma quadra da
Avenida Paulista você vê mais pessoas em situação de
rua do que em toda Pyongyang. Por falar em Pyongyang, continua Ferracioli,
é possível ver no final da tarde pessoas nos vários
jardins e praças públicas conversando, rindo, brincando com os
filhos (ele destaca que não se vê nenhuma criança em
situação de vulnerabilidade, como é possível entrar
em toda cidade brasileira) ou em estabelecimentos conversando e tomando
cervejas.
O leitor pode pensar que estou falando das conquistas sociais mas ocultando a
dimensão política do país. A Coreia é normalmente
retratada como uma monarquia, um país dominado por uma família,
uma espécie de stalinismo de maior intensidade. Como costuma ocorrer nos
tratamentos dados às experiências de transição
socialista, é tomado como um consenso óbvio que nada existe de
democracia, poder popular ou liberdade no país. Bem, primeiro, chamar a
Coreia de monarquia é uma prova de extrema superficialidade.
O professor Paulo Visentini, um dos autores de um livro recente sobre a Coreia
Popular
(
A revolução coreana: o desconhecido socialismo Zuche
)
livro aliás ignorado no geral pela militância de esquerda
(desconheço, por exemplo, qualquer intelectual de esquerda que tenha
escrito ou resenha ou tentado refutar as análises de Visentini) ,
diz o seguinte sobre a ideia da Coreia ser uma monarquia:
"É importante ressaltar que o sistema político norte-coreano
é republicano e bastante complexo, havendo limites ao poder do dirigente
e certo grau de liderança coletiva e participação popular.
Por outro lado, a situação de tensão militar externa
reforça os elementos para a identificação da
nação com uma pessoa, cuja liderança de continuidade
também é fundamental para evitar crises sucessórias que,
no caso da RPDC, seriam, certamente, fatais. A liderança quase
sacralizada representa mais um símbolo de unidade nacional do que o
poder em si mesmo. O povo norte-coreano e sua liderança expressam
orgulho por suas realizações e não se dobram sequer
à China, cujos interesses são oscilantes. A ideologia Zuche, de
autossuficiência, representa uma política de
autopreservação que não pretende ser imposta a outras
nações, apesar da grande cooperação existente com
dezenas de Estados em desenvolvimento."
(A revolução coreana
, São Paulo, Unesp, 2015, p. 23)
E continua em outro momento do livro:
"A compreensão do
ethos
norte-coreano depende do conhecimento das origens da
revolução (relacionadas à guerrilha antijaponesa) e,
principalmente, do terrível impacto que a guerra teve sobre o
país. A luta pela libertação nacional foi condicionada
pela intensa mobilização de diferentes grupos sociais e pela
percepção das lideranças de que a unidade deveria ser
construída através de uma consciência nacional. Foi nesse
cenário que Kim Il-Sung expôs os elementos constitutivos da Ideia
Zuche (ou Juche) e a linha revolucionária baseada nessa doutrina, cujos
princípios já faziam parte das raízes do movimento. O
Zuche se desenvolveu em um quadro de lutas externas e internas e seria
aprofundado como base para a reorganização do país no
pós-guerra. Fortemente apoiado em uma visão nacionalista, serviu
como teoria e método para o regime consolidado. A Guerra da Coreia foi
uma guerra de extermínio, com o uso de napalm e bombardeios massivos
para destruir todas as cidades e a infraestrutura do país. Houve
ameaça nuclear explícita, como visto anteriormente, e chegou a
ser defendida a criação de um corredor radioativo de até
60 km junto à fronteira com a China. Como resultado, o país
desenvolveu uma mentalidade de bunker e centenas de quilômetros de
túneis, assim como 15 mil refúgios profundos foram
construídos, abrigando depósitos de mantimentos e armamentos,
hospitais, fábricas, hangares para aviões e refúgios para
a população. O medo de um ataque nuclear foi real nesse momento,
inclusive porque os EUA estacionaram armas atômicas na Coreia do Sul e no
Japão." (p. 67)
Visentini desenvolve ainda uma excelente argumentação sobre as
influências pré-revolucionárias na estrutura de poder atual
da Coreia Popular e a mescla, única no mundo, entre elementos da cultura
asiática, o neoconfucionismo e o marxismo. Não podemos, no
âmbito desta coluna, abordar a complexidade do assunto, mas adiantamos
que quem não conhece nada da milenar história coreana, das
tradições estatais e do confucionismo, provavelmente vai cair na
tentação fácil e preguiçosa de assimilar a
dinâmica da Coreia Popular à da União Soviética de
Stálin, colocando à ambos o rótulo fácil e que nada
diz de culto à personalidade.
Em uma fortaleza sitiada, toda dissidência é traição
A frase acima é de Fidel Castro. O revolucionário e estadista
cubano conseguiu compreender o grande problema da transição
socialista do século XX, ainda que tardiamente, no final da sua vida. Ao
contrário de certa compreensão hegemônica, pautada
diretamente pelos monopólios de mídia e pela ideologia dominante,
o grande problema do socialismo no século passado não foi a falta
de democracia ou liberdade, mas o
desafio de se conseguir construir uma democracia operária, superior na forma e no conteúdo à democracia burguesa, em um estado de guerra permanente durante a tentativa de superar o subdesenvolvimento e a dependência
.
Muitas vezes, ao olharmos nossa história, deixamos de racionalizar um
dado básico: toda experiência socialista até hoje passou
por uma invasão militar imperialista ou teve que enfrentar uma cruel
guerra civil antes da conquista do poder e com a revolução
vitoriosa. Na imensa maioria das vezes, essa invasão militar foi
derrotada, mas não sem enormes custos humanos e de riqueza. Toda
experiência de transição socialista, as passadas e as
atuais, teve ou tem que despender enormes quantidades de riqueza material para
defender sua soberania nacional. E como bem disse Fidel, "em uma fortaleza
sitiada, toda dissidência é traição". O estado
de guerra não condiciona o fortalecimento da democracia de
qualquer forma de democracia, inclusive a burguesa. E quando falamos estado de
guerra, a questão não diz respeito apenas a confrontos militares
diretos. Mais uma vez, um dado universal, mas pouco estudado: toda
experiência socialista passada e atual sofreu/sofre com asfixiantes
bloqueios econômicos do imperialismo (convido o leitor a refletir:
quantos artigos ou livros você já leu sobre bloqueios
econômicos? Sabe como funcionam? Seus impactos?).
Recentemente o Center for Economic and Policy Research
lançou um estudo
dirigido por Mark Weisbrot e Jeffrey Sachs respectivamente, um
jornalista progressista e um economista liberal que analisa os impactos
das sanções econômicas dos Estados Unidos contra a
Venezuela impostas de 2017 até os dias atuais e chega a uma
conclusão perturbadora: "[as sanções] foram
responsáveis pela morte dezenas de milhares de venezuelanos no
biênio de 2017-2018 uma estimativa de aproximadamente 40 mil
pessoas". Esse estudo não teve qualquer repercussão na
mídia ou entre os intelectuais de esquerda inclusive, os
"críticos" do "autoritarismo de Maduro".
Já a Coreia Popular é o país mais bloqueado do mundo. A
situação do país depois do fim da URSS e do campo
socialista foi catastrófica, com o padrão de vida decrescendo em
ritmo assustador. A partir dos anos 2000, conseguiu superar a crise
econômica e seus efeitos mais agudos, período chamado de
Árdua Marcha, mas não consegue forcar no desenvolvimento
econômico e no bem-estar do seu povo. O imperialismo não permite.
No último dia 9 de maio, o navio cargueiro
Wise Honest
que
transportava carvão e maquinaria para Coreia Popular foi apresado por
ordem do Departamento de Estado dos EUA em uma manobra única, acusando-o
de violar as sanções dos Estados Unidos.
O blog
De Pyongyang a La Habana
lançou um
estudo completo
sobre todos os bloqueios e sanções econômicas que sofre a
Coreia Popular. Esse texto mostra o grau de severidade do bloqueio contra a
Coreia Popular novamente, um estudo ignorado pela maioria dos militantes
brasileiros. Já o jornal
The New York Times,
em matéria de 2017 coloca como título [tradução
livre]
"A fome na Coreia do Norte é devastadora. E a culpa é nossa"
. Apesar do tom sensacionalista e do uso de alguns dados
questionáveis, a matéria do jornal estadunidense é
certeira ao apontar que as dificuldades alimentares do país têm
uma origem bem precisa: a sabotagem econômica do imperialismo ocidental.
Diz Kee B. Park, que assina a coluna:
"Liderada pelos Estados Unidos, a comunidade internacional está
estrangulando a economia da Coreia do Norte. Em agosto e setembro [de 2017], o
Conselho de Segurança da ONU aprovou resoluções banindo a
exportação de carvão, ferro, chumbo, frutos do mar e
têxteis e limitando a importação de óleo bruto e
derivados de petróleo refinado. Os Estados Unidos, o Japão e a
Coreia do Sul, cada um, impuseram sanções à Pyongyang para
isolar ainda mais o país."
A justificativa oficial para essa asfixia econômica, como sabemos,
é impedir a Coreia Popular de desenvolver seu programa nuclear.
Supostamente, o país seria uma ameaça ao mundo. Um país
pequeno sem qualquer histórico de golpes militares, invasões ou
sabotagens contra seu vizinho, é atacado pela "comunidade
internacional" liderada pelos Estados Unidos: país com mais 800
bases militares espalhadas pelo mundo, mais de 50 golpes de estado aplicados
com participação direta e indireta, uma série de
invasões neocoloniais (Iraque, Afeganistão, Panamá,
Vietnã, Guatemala etc, etc, etc) e a ação da CIA pelo
mundo todo buscando a "mudança de regime" de projetos
políticos que buscam algum grau de soberania nacional.
A realidade é que a guerra é um perigo real para o povo coreano.
Na guerra de 1950-1953, cerca de 30% da população coreana foi
morta e o país completamente destruído um país
já devastado devido à guerra de libertação contra o
colonialismo japonês. O nível de brutalidade por parte dos EUA foi
tão grande que E ainda depois do cessar-fogo temporário de 1953,
juridicamente, a Guerra da Coreia nunca acabou: além da milenar
Nação Coreana ter sido dividida em duas, os Estados Unidos nunca
deixaram de manter uma pressão militar permanente.
Até hoje a Coreia Popular é cercada por mais ou menos 20 mil
soldados dos Estados Unidos e arsenal atômico. Não é a
Coreia Popular que está na fronteira dos EUA buscando uma
"mudança de regime", mas o contrário. Os líderes
coreanos aprenderam desde muito cedo que o imperialismo só entende a
linguagem da força. Quem discorda, basta olhar para Líbia, que de
país com melhor IDH e infraestrutura da África passou a um mar de
lama e sangue dominado por grupos armados fundamentalistas, contando,
inclusive, com o tráfico de humanos escravizados.
Conclusão
Diante de tudo que escrevemos, a conclusão é inequívoca:
eu apoio e defendo a Coreia Popular. Esse apoio e defesa não se confunde
com uma adoração acrítica do país. Mesmo sendo um
historiador que dentro dos seus limites estuda a história
asiática, conhece um pouco as tradições do país e o
confucionismo, a forma-política do Estado coreano não me agrada.
Também não tenho qualquer simpatia por desfiles militares
pomposos e culto de armas. Mas não sou idealista. O mundo não
é, ainda, o que queremos.
No mundo real, temos uma experiência revolucionária que desde que
nasceu não consegue se desenvolver livremente. É atacada,
caluniada, cercada, perseguida, asfixiada economicamente. Todo esse bloqueio do
imperialismo gera deformações e certo nível de
burocratização pouco agradável a alguém que defende
uma democracia operária. Mas a prioridade quando o assunto é a
Coreia Popular, é defender o país do imperialismo. Agitar a
bandeira da autodeterminação dos povos, contra o uso de armas
nucleares e da reunificação pacífica na península.
Temos uma experiência igualitária (ainda que com
privilégios corporativos), fundamentada no ideário socialista e
com um povo com ardentes sentimentos anti-imperialistas. É uma
experiência nossa, do nosso campo, com todos seus erros e acertos,
glórias e caricaturas, e eu a abraço sem reservas envergonhadas
ou tímidas geradas por sentimentos liberais, anticomunistas ou
orientalistas.
Não tenho medo de ser chamado de dogmático, stalinista,
fanático ou qualquer coisa do tipo por manifestar meu apoio a um povo
que deseja ser livre. Meu maior medo, quando o assunto é a Coreia
Popular, é ver esse povo terminar como o líbio ou o palestino.
Mas isso, tenho certeza, não irá acontecer. A
Revolução Coreana segue firme. E o imperialismo, por mais
ameaçador que pareça, é um tigre com dentes de papel!
29/Maio/2019
[1] Vinícius Moraes, "A Propagação Hegemônica:
como as agências globais e a mídia ocidental cobrem a
geopolítica (parte 2)",
Revista Ópera
, 23 abr. 2019.
[2] Caio Navarro de Toledo, "A modernidade democrática da
esquerda: adeus à revolução?", em:
Crítica Marxista n. 1
, 1994.
Ver também:
Pelo direito de existir: 71 anos da Coreia Popular
Ciência e tecnologia na Coreia do Norte, Introdução
Ciência e tecnologia como o caminho para o progresso económico, Parte 1
Irrigar os campos uma luta de duas décadas, Parte 2
Enriquecer o solo produzir para além da subsistência, Parte 3
Avanços na agricultura sustentável e nas energias renováveis, Parte 4
Report of the International Scientific Commission for the Investigation of the Facts Concerning Bacterial Warfare in Korea and China
(Relatório de crimes de guerra cometidos pelos EUA, 1952, 764 p.)
[*]
Professor de história, brasileiro.
O original encontra-se em
blogdaboitempo.com.br/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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