Alucinações circulatórias da moeda e do capital fechando o
ciclo
Marx lembrava com satisfação, na Introdução
à
Crítica da Economia Política,
a inspiradíssima frase de
lorde Gladstone
o mais poderoso político e primeiro-ministro inglês da
imperialista era vitoriana:
"
nem mesmo o amor levou tanta gente à loucura como as
cogitações sobre a essência da moeda
"
Acontece que, na última semana, mais de cento e cinquenta anos depois da
morte do poderoso lorde britânico, sua frase reapareceu com cintilante
atualidade nas cogitações dos economistas do sistema sobre
estranhos movimentos ocorridos na variação dos
"preços do dinheiro" (juros) na maior economia do planeta.
O foco do mercado saiu momentaneamente da política monetária e da
popular taxa básica de juros do Federal Reserve Bank (Fed, banco central
dos EUA). Ou mesmo das oscilações das principais moedas globais,
do preço do ouro, etc.
Nesta semana aconteceram coisas mais preocupantes para a ordem e o progresso
capitalista em todo o mundo. De repente, todas as atenções dos
homens do mercado deslocaram-se para as curvas de juros
(yelds)
dos títulos de dívida dos governos nas principais economias do
mundo; dos EUA, principalmente.
Da moeda para a quase-moeda. Ora, trata-se aqui justamente de um
território da acumulação do capital como um todo
(produção e circulação) em que a essência da
moeda está mais longe do entendimento dos capitalistas e seus limitados
economistas que em todas suas outras formas de aparecimento.
Muito mais distante ainda do entendimento das pessoas comuns em todo o mundo,
que não têm a menor ideia nem do que sejam essas quase-moedas dos
governos e outras misteriosas formas do valor.
Mesmo assim assistiram atônitos, no decorrer desta nesta semana, nos
noticiários de televisão do horário nobre, os
apresentadores informarem em tom grave de voz e testas franzidas de
preocupação que estava ocorrendo uma inversão na curva de
rendimentos dos títulos de 10 anos e de 2 anos do tesouro dos EUA !!!
Infelizmente, para o grande público da cidade global os movimentos
materiais envelopados em categorias da economia política são
muito mais difíceis de serem didaticamente esclarecidos que as
encenações da política e de outras formas religiosas da
civilização.
De todo modo, o mundo não para. Às vezes até acelera. Como
nesta semana, quando aconteceu uma sucessão de fatos incríveis no
processo de circulação do
dinheiro-capital
para a definição da data e da profundidade da explosão da
próxima crise de superprodução do capital global.
Observemos inicialmente a superficialidade dos fenômenos. Por volta das
14 horas de quinta feira (15) o rendimento da nota de 10 anos do Tesouro, que
se move inversamente ao seu preço de venda, atingiu uma baixa de
três anos na marca de 1,467%, abaixo do rendimento dos títulos a 2
anos de 1,475%, seu nível mais baixo desde outubro de 2017.
Ocorria então aquela incomum e perigosa inversão da curva de
rendimentos de um título de longo prazo (10 anos) e de um de curto prazo
(2 anos). Isto representa no fechado mundo da economia um paradoxo no fluxo
natural do capital produtor de juros e, claro, uma grande
preocupação no mercado.
Não é nem um pouco natural que os capitalistas passem a ser mais
bem remunerados por emprestar ao governo dos EUA pelo prazo de 2 anos do que
pelo prazo de 10 anos.
Essa inversão da curva de rendimentos não foi um fato isolado.
Ocorreu simultaneamente a outra sinalização também muito
importante para a definição do próximo choque
periódico e crise do capital.
Além das peripécias dos títulos de 10 e de 2 anos, pela
primeira vez na história os títulos de 30 anos do Tesouro dos EUA
estavam pagando um rendimento abaixo de 2,0%, cravando 1,961%, após cair
para até 1,941%. Veja no gráfico abaixo a evolução
de longo prazo deste rendimento dos títulos de 30 anos.
Em 1989, os títulos de 30 anos do tesouro dos EUA pagava 10%. Na semana
passada estava pagando menos de 2%. Essa queda histórica nos rendimentos
dos títulos de longo prazo dos EUA é observada com muita
preocupação pelos capitalistas. Por duas razões principais.
A primeira, porque a inversão dessa parte-chave da curva de juros tem
sido historicamente um indicador que se repetiu e que antecipou a
aproximação de todos (absolutamente todos) os choques
cíclicos do pós-guerra, chamados de "recessão"
pelos economistas vulgares.
A segunda preocupação é com o fato de que crescentes
pressões cíclicas sobre o processo de produção e
acumulação mundial levaram os capitalistas a tanto medo do seu
futuro, no curto-prazo, que o estoque mundial dos títulos dos governos
negociados a taxas negativas de rendimentos elevou-se exponencialmente em todo
o mundo para um novo recorde dos últimos setenta anos.
O normal do mercado é que os capitalistas emprestem seu dinheiro ao
governo com a promessa de ser pago de volta, acrescidos com juros, na data do
vencimento. Juros positivos, portanto. Mas agora, à medida que os
capitalistas se tornam cada vez mais desesperadas por um "porto
seguro" para sua propriedade privada ameaçada pela próxima
crise são os governos de grandes economias que são remunerados ao
tomar dinheiro emprestado. Com juros negativos!
Essa história de juros negativos é muito menos normal do que
aquela inversão da curva de rendimentos entre títulos de longo e
de curto prazo observada acima.
Mesmo alguns bancos privados europeus já oferecem empréstimos aos
seus fregueses com juros negativos. Você toma emprestado 10 euros agora e
paga 9 euros daqui 10 anos. Dá para acreditar? Mesmo assim, pouca gente
aparece para aproveitar essa "generosidade".
Assim, se aprofunda velozmente e se amplia neste final de ciclo econômico
a clássica
armadilha da liquidez
, na qual as taxas de juros cada vez mais baixas tornam-se, ao mesmo
tempo, as maiores do mundo. O sistema de crédito desaparece.
Esse bizarro fenômeno ocorre na medida em que as pressões
deflacionárias nos preços e lucros mundiais das
mercadorias-capital dão o sinal de alerta aos capitalistas sobre uma
nova e iminente interrupção da acumulação em todas
as esferas da circulação capitalista.
A armadilha da liquidez, o desaparecimento do crédito e, finalmente, o
derretimento da moeda, é resultado de um processo deflacionário
de preços que se alastra por todo o mercado mundial.
Cerca de US$ 15 trilhões de títulos do governo em todo o mundo,
ou 25% do mercado, já são negociados a taxas negativas, segundo o
Deutsche Bank. Este número quase triplicou desde outubro do ano passado.
Acontece, neste exato momento, um processo inédito de
armadilha da liquidez
e deflação global no período pós-guerra. Nota-se
no gráfico acima o importante fato que esse processo de entrada do
capital produtor de juros no território dos rendimentos negativos
inicia-se mundialmente no mês de agosto de 2014. Timidamente, até
o início de 2016, acelerando-se nos anos seguintes. Finalmente, como
já observado acima, o volume deste
entesouramento
é triplicado desde outubro do ano passado.
Deve ser devidamente registrado o seguinte: o fato de este fenômeno ser
inédito nos últimos setenta e cinco anos ter ocorrido apenas
recentemente, a partir de 2014, é muito importante para a análise
da forma e magnitude específicas da iminente crise global.
Os bancos centrais globais têm afrouxado sua política
monetária em níveis sem precedentes nos últimos setenta
anos, com a dívida pública se expandindo descontroladamente na
Europa e no Japão com taxas de juros zero ou negativas. Uma
superprodução de moeda e de crédito para segurar os
preços de produção das mercadorias-capital.
O montante da dívida global com rendimentos negativos continua a crescer
e, à medida que os bancos centrais tentam reagir e se proteger da grande
crise global que se aproxima eles contribuem para um declínio ainda
maior nos rendimentos dos títulos.
Na Alemanha e sua poderosa economia industrial os títulos do governo de
30 anos foram negativos pela primeira vez na semana passada.
Agora, com a mais do que provável entrada dos títulos
públicos estadunidenses nesta contabilidade da massa de títulos
negociados com taxas de juros negativas, pode-se imaginar que essa bastarda
massa de capital passaria a representar instantaneamente não mais apenas
25%, mas de 50 a 70% do total deste títulos públicos em todo o
mundo.
Além desta gigantesca e inédita migração de massas
de capital com taxas de juros negativas para os títulos públicos
de longo prazo das principais economias vislumbra-se também a
extensão e a violência da destruição de capital que
deve ocorrer no período de crise que se aproxima. Uma massa de capital
de aproximadamente US$ 30 trilhões a ponto de ser instantaneamente
incinerada.
Em outras palavras, é bastante elevada a probabilidade da próxima
reversão do período atual de expansão do ciclo para o
próximo período de crise desembocar diretamente em uma crise
geral ou catastrófica, como descrita por Rosa de Luxemburgo.
Uma crise catastrófica da economia mundial também seria
inédita no período pós guerra dos últimos 75 anos.
O mundo viraria de ponta-cabeça. Tudo se tornaria possível.
No mês passado, o presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi botou
mais lenha na fogueira. Sinalizou, do mesmo modo que o Fed vem sinalizando nas
duas últimas semanas, que o BCE reduzirá ainda mais as taxas de
juros antes do final do ano, já que "um grau significativo de
estímulo monetário continua sendo necessário para garantir
condições financeiras favoráveis e apoiar a
expansão da zona do euro".
Ao tentar salvar as condições financeiras do sistema
ameaçadas pela derrocada econômica na produção de
valor e de mais-valia os capitalistas destroem antes o seu sistema
monetário e de crédito público.
É por isso que todas as crises periódicas de
superprodução de capital são abertas por uma crise
financeira, antes mesmo de alcançar a esfera produtiva e comercial. Este
roteiro da realização da crise mistifica ainda mais as suas
causas. Para os economistas em geral a crise econômica será sempre
apenas mais uma crise meramente financeira ou de crédito.
Na maneira mais sofisticada desta mistificação, no caso dos
marxistas keynesianos, será sempre uma crise de
sobre-acumulação, não de superprodução de
capital. Tudo é um problema circulatório. Relembrando mais uma
vez Rosa de Luxemburgo, estes "epígonos de Marx" estacionaram
no livro 2 de
O Capital
(o Processo de Circulação do Capital) e esqueceram de ler a
sequência no Livro 3 (Processo de Conjunto da Produção e
Circulação do Capital).
Na raiz destas dificuldades teóricas (com danosas consequências
práticas) encontra-se a confusão que todos esses economistas
vulgares fazem da relação orgânica entre
dinheiro-capital,
de um lado, e, de outro lado,
capital-dinheiro.
O primeiro é capital produtor de juro, o segundo é capital
produtor de lucro. Daí todos esses revisionismos teóricos dos
marxistas do século 21 como "financeirização do
capital" e outras asneiras.
Acontece que na dinâmica econômica, estritamente delimitada pelo
ciclo periódico de superprodução e crise do capital, a lei
da gravidade (ou do valor) da economia sempre se impõe sobre a
desmesurada superprodução de juros ocorrida no período de
expansão. Como deflação dos preços mundiais e
abrupta redução da autonomia relativa da esfera financeira,
além da sagrada autonomia igualmente relativa da política
econômica dos governos.
Em um ciclo econômico completo, a grande massa da
superprodução de capital criada no período expansivo
consiste deste dinheiro-capital ou (capital-fictício) que, nas fases
finais de encerramento do ciclo, como agora, perde progressivamente sua
autonomia relativa frente à produção de valor e de
mais-valia e se desvaloriza abruptamente.
Antecipa-se assim, na forma de uma crise de crédito e de uma gigantesca
queima de capital, que ora se avizinha, a paralização da
produção e a depressão econômica propriamente dita.
A maior parte deste
entesouramento
de mais de US$ 15 trilhões detectado pelo Deutsche Bank é de
dinheiro-capital, capital produtor de juros, que migra em quase sua totalidade
de uma infinidade de ativos financeiros do mercado de capitais, sistema
bancário, etc., para o "porto seguro" dos títulos
públicos.
Neste mês de agosto de 2019, este corrosivo processo de
superprodução do conjunto do capital se aproxima de seu desenlace
na medida exata em que os rendimentos ainda positivos dos títulos
públicos dos EUA também se aproximam, como vimos acima, das taxas
negativas que já toma conta das principais economias mundiais.
Anuncia-se inédita e planetária queima de capital. É
exatamente nesta tão esperada revelação que reside a
grande importância dos fatos ocorridos nesta semana com os
enlouquecedores e essenciais movimentos da moeda na maior potência
econômica do planeta e no resto do mundo.
18/Agosto/2019
[*]
Economista.
Ver também:
Capital fictício
A atualidade de Marx face à financeirização: capital fictício, divida e juro
Crise: algumas perguntas e respostas
La crisis global y el capital ficticio
O original encontra-se em
criticadaeconomia.com/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|