A vacina russa contra a COVID 19, sobre os ombros da URSS
Se escrevo este artigo é porque creio que ninguém está a
dizer o óbvio: as equipas científicas russas foram capazes
de criar a vacina porque ainda existe uma poderosa estrutura estatal de
laboratórios de investigação que foi desenvolvida pela
União Soviética.
O anúncio de que a Rússia já dispunha de uma vacina
contra a Covid-19 deu lugar a massivas desqualificações prenhes
de carga política e económica. O alinhamento com os EUA por parte
dos grandes meios de comunicação, correias de transmissão
da servil subordinação política ao imperialismo
norte-americano que por outro lado se assemelha cada vez mais
àquele que tenta salvar-se agarrando-se a quem se afoga , leva a
desqualificar tudo o que vem da Rússia com a irracionalidade e
sistematicidade de uma mola.
No caso da vacina russa, a rejeição mediática generalizada
está também untada pelos poderosíssimos interesses das
multinacionais farmacêuticas. Os impérios do medicamento já
esfregavam as mãos e preparavam os seus cofres para recolher os lucros
da venda mundial de centenas de milhões de vacinas. Ainda está
fresca a memória dos milhares de milhões de dólares
obtidos pela Gilead
[1]
com o Sovaldi ou pela Roche com o Tamiflu
[2]
, fármaco criado contra uma epidemia, a da Gripe A, que nunca existiu.
Muito se ironizou sobre os dois lapsos de
Fernando Simón
ao atribuir a vacina à URSS. Desconheço qual é a
opinião de Simon sobre a URSS, mas efectivamente, os avanços
soviéticos em saúde pública e medicina preventiva
alguns dos quais sobreviveram à Perestroika de Gorbachev, que
considerava suspeito de ineficácia tudo o que era público
tornaram possível uma vacina à qual, significativamente, chamaram
Sputnik V.
A URSS e a saúde pública
A Revolução de Outubro de 1917 deu origem ao primeiro sistema
público de saúde, universal, baseado na promoção da
saúde e na prevenção da doença e que exigia no seu
funcionamento a participação da população na tomada
de decisões
[3]
.
Num Estado que apresentava no início do século XX taxas de
mortalidade infantil elevadíssimas de cada 1.000 mortos, dois
terços eram crianças com menos de 5 anos e de mortalidade
por doenças infecciosas (a mortalidade por tuberculose era de
400/100.000), a implementação de serviços de saúde
em todos os recantos do imenso território foi acompanhada pela
implementação de medidas de prevenção generalizadas
[4]
.
A vacinação de toda a população foi mais uma
medida, entre outras também decisivas. O acesso a água
potável e ao tratamento de resíduos, à electricidade
("O comunismo é o poder dos sovietes mais a
electrificação de todo o país" V.I. Lénine
[5]
), a habitação higiénica com aquecimento, a boa
alimentação, a condições de trabalho decentes, a
educação,
e ao poder político
conditio sine qua non
, são muito mais importantes do que os medicamentos para melhorar
a saúde das populações
[6]
.
A Rússia czarista já havia desenvolvido uma importante
trajectória científica em microbiologia, e especificamente em
vacinas, que não chegavam ao seu povo. Antes da descoberta da vacina
contra a varíola por Edward Jenner em 1796 e uma vez que a doença
devastava desde há séculos a vida de milhões de pessoas em
todo o mundo, aplicava-se um procedimento arriscado: a
variolização.
Provocava-se o contágio para induzir imunidade, embora o risco de
morte fosse elevado.
Após a morte por varíola do czar Pedro I em 1730, a imperatriz
Catarina II, juntamente com o seu séquito, submeteu-se publicamente a
tal procedimento que teve êxito e utilizou-o como arma
propagandística a favor da ciência e contra a
superstição. Efectivamente, com apoio estatal foram desenvolvidas
instituições científicas relacionadas com a imunologia.
O Centro Nacional de Investigação de Epidemiologia e
Microbiologia, responsável pela descoberta da vacina contra a Covid 19,
tem o nome do cientista
Fiodor Gamaleya
. Gamaleya desenvolveu nos finais do século XIX importantes
investigações sobre a raiva com Luis Pasteur e com o seu apoio
fundou o primeiro Instituto Bacteriológico da Rússia, o segundo
do mundo. Seguiram-se descobertas de Gamaleya e outros cientistas russos sobre
vacinas e mecanismos de transmissão da cólera, peste, tifo, etc.
O triunfo da Revolução em 1917 criou as condições
para a aplicação desses avanços, que tinham permanecido
encerrados em laboratórios, ao conjunto da população.
Realizou-se a primeira campanha de vacinação universal da
história da humanidade: em 18 de Setembro de 1918, o
Comissário
do Povo para a Saúde Pública N.A. Semashko adoptou o
"Regulamento de vacinação contra a varíola"
baseado no relatório científico de Gamaleya e em Abril de 1919 o
Presidente do Conselho de Comissários do Povo V.I. Lénine assinou
o decreto correspondente. Foi a primeira campanha de vacinação
universal da história da humanidade
[7]
.
No início dos anos 1930, a URSS foi o primeiro território do
mundo a anunciar a erradicação da varíola. À escala
mundial esse facto ocorreu 50 anos depois.
Os anos em que a OMS gozou de prestígio e autoridade mundiais
antes de
ser engolida pelas multinacionais farmacêuticas foram tempos de
grande
influência da URSS. Em 1958, Viktor Zhdanov, vice-ministro da
Saúde soviético, propôs à Assembleia da OMS um plano
para erradicar a varíola à escala global, que foi aprovado e
posto em marcha. Algo mais de vinte anos depois, ao declarar a
erradicação da varíola no planeta, o director da OMS
lembrou a contribuição extraordinária da URSS para os
países carentes de recursos: 400 milhões de doses da vacina
[8]
.
A vacina contra a poliomielite na URSS e a da Covid 19
Em meados do século XX uma nova epidemia causava grande mortandade e
incapacitações: a poliomielite. Nos EUA, em 1955, foi
desenvolvida a primeira vacina, baptizada Salk com o nome do seu descobridor.
Pouco depois, o virologista Albert Sabin descobriu outro tipo de vacina mais
eficaz, mais barata e mais segura (a vacina de Salk tinha apenas 60% de
eficácia). Dado o sucesso da primeira não foi possível
testá-la nos EUA.
Os cientistas soviéticos, Mikhail Chumakov e Anatoly Smorodintsev, foram
enviados aos Estados Unidos. Sabin e Chumakov acordaram continuar a desenvolver
a vacina em Moscovo. Vários milhares de doses da vacina foram trazidos
dos Estados Unidos numa mala vulgar e as primeiras vacinações
começaram.
Chumakov e a sua companheira, a virologista Marina Voroshilova, iniciaram a
experiência em Moscovo com os seus próprios filhos. A vacina
consistia num vírus debilitado, utilizava-se a via oral e era
administrada por meio de um torrão de açúcar, de forma que
não necessitava de pessoal qualificado.
Em ano e meio acabou a epidemia na URSS. Em 1960, 77,5 milhões de
pessoas foram vacinadas. Albert Sabin foi chamado a depor acusado de
actividades anti-americanas.
Uma anedota da época acaba por ser de grande actualidade. No
Japão, a poliomielite assolava a população infantil e
apenas a vacina Salk, de eficácia limitada e além disso em
quantidade insuficiente, estava disponível. A vacina produzida na URSS
não conseguia, por óbvias razões políticas e
económicas, as licenças para ser importada. Depois de diversas
peripécias, milhares de mulheres japonesas saíram à rua
para exigir a vacina e alcançaram o seu objectivo. O filme
soviético-japonês "Step" do realizador Alexander Mitta
conta a história
[9]
.
Deve sublinhar-se que os avanços russos em matéria de vacinas
continuaram após a queda da URSS. O Centro Nacional de
Investigação de Epidemiologia e Microbiologia descobriu
recentemente uma vacina contra o Ébola e trabalha actualmente em
várias linhas de investigação, uma das mais
avançadas a que tenta encontrar a vacina contra outro
Coronavírus, o MERS-Cov. Desta forma, como reiteraram proeminentes
investigadores russos, a rapidez do processo com a vacina contra a Covid-19
deve-se ao facto de se ter trabalhado sobre plataformas criadas há anos
que avançavam em direcções semelhantes. De momento, a
Rússia anunciou a fabricação de 1.000 milhões de
doses para 20 países solicitantes.
A experiência continuará a escrever história. O que
não se pode ignorar é que a campanha para desacreditar a vacina
russa é orquestrada por gente que nada tem a ver com procedimentos
científicos e tem, sim, muita relação com
poderosíssimos interesses económicos, entre outros, da
indústria farmacêutica.
Por outro lado, apesar dos lapsos de Fernando Simón, nem Putin é
Lénine, nem a Rússia é a URSS. Mas nós,
trabalhadores de todo o mundo, não deveríamos esquecer que a
gigantesca gesta operária de Outubro de 1917 e a derrota do fascismo na
Segunda Guerra Mundial, ainda continua a permitir alcançar, como neste
caso, avanços científicos desenvolvidos sobre décadas de
trabalho não sujeito aos interesses do capital e produzidos em
instituições públicas.
Não é de todo provável que, apesar do sofrimento causado
pela pandemia e do evidente desastre do sistema de saúde no Estado
espanhol, o governo "progressista" se atreva a dar prioridade
à saúde do seu povo e enfrentar, mesmo que apenas uma vez, o
poder de um dos baluartes do imperialismo: a indústria
farmacêutica.
A conquista da independência, da verdade, terá que vir de outras
mãos, da construção de outro poder capaz de derrotar a
barbárie.
21/Agosto/2020
[1]
A multinacional norte-americana Gilead quadruplicou os seus lucros ao comprar
a patente do medicamento Sofosbuvir para Hepatite C. O medicamento, descoberto
em laboratórios públicos dos Estados Unidos, era vendido em
função da negociação com o Estado comprador. Um
tratamento na Índia custava entre 100 e 200 dólares e em Espanha,
25.000.
www.nogracias.eu/2014/04/10/tamiflu-la-mayor-estafa-de-la-historia/
[2]
O Tamiflu da farmacêutica Roche, a maior vigarice da história.
Governos de todo o mundo gastaram milhares de milhões de dólares
num medicamento contra uma epidemia que não existiu. A multinacional
ocultou resultados de investigações que demonstraram que
não encurtava os internamentos, nem reduzia as
complicações e que, pelo contrário, tinha importantes
efeitos secundários. O governo de Zapatero gastou 333 milhões de
euros em Tamiflú em 2009, em plena crise, quando a despesa
pública era maciçamente cortada na saúde e outros
serviços públicos.
www.nogracias.eu/2014/04/10/tamiflu-la-mayor-estafa-de-la-historia/
[3]
Uma ampla referência à obra seminal sobre os princípios
fundamentais e o desenvolvimento do sistema de saúde soviético e
o ensino das profissões da saúde "Social Hygiene and Public
Health Organization" por A.F. Serenko e V.V. Ermakor, acessível em
espanhol, pode ser consultada em https:
www.scielosp.org/article/rcsp/2017.v43n4/645-660/
[4]
Um resumo das origens do Sistema de Saúde da URSS e da figura de
Nikolai Semasko, primeiro Comissário do Povo para a Saúde, pode
ser encontrado em russo, com tradução automática, aqui:
regnum.ru/news/polit/ 2318307.html
[5]
"Lâmpada de Ilyich" A primeira lâmpada foi inventada por
um engenheiro russo em 1874 e sua chegada às aldeias mais remotas da
Rússia tornou-se o símbolo da Revolução. Aqui pode
ver pormenores do GOELRO, o plano de electrificação de toda a
Rússia.
https://es.wikipedia.org/wiki/GOELRO
[6]
Sobre o médico prussiano Rudolf Virchov, patologista de destaque e
considerado o fundador da Saúde Pública.
http://webs.ucm.es/centros/cont/descargas/documento28401.pdf
[7]
A história da primeira campanha de vacinação universal da
história da humanidade e da erradicação da varíola
na URSS pode ser consultada aqui:
books.google.es/...
[8]
https://www.who.int/mediacentre/news/notes/2010/smallpox_20100517/es/
[9]
Com base nesta história, o realizador Alexander Mitta filmou em 1988 a
coprodução sovieto-japonesa "Step", com Leonid Filatov
e Komaki Kurihara nos papéis principais. Oleg Tabakov, Elena Yakovleva,
Vladimir Ilyin, Garik Sukachev actuaram com eles. A sua canção
"My Little Babe" é reproduzida no filme
www.academia.edu/39610881/CINE_RUSO_Historia_y_literatura_rusa_y_española
Ver também:
Une belle histoire de virus (contre la virophobie ambiante...)
, de Guillaume Suing
A vacina Sputnik V como salvadora da humanidade
, de Kirill Dmitriev
Los crímenes de las grandes compañías farmacéuticas
, livro de Teresa Forcades i Vila
Todo sobre la vacuna rusa (incluido lo que otros no te cuentan)
, vídeo
Claves del éxito de Cuba contra el coronavirus (no lo verás en otros medios)
, vídeo
Cuba’s vaccine candidate 'Sovereign' begins clinical trials today
[*]
Médica, dirigente da Red Roja, Espanha
O original encontra-se em
redroja.net/...
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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