A questão vacinal é sem dúvida a mais espinhosa de todas as questões sanitárias na actual sequência do COVID19: No espírito do grande público é o “remédio milagroso” por excelência e é isso que nos é vendido nos écrans da televisão. Em poucos meses, esta questão assumiu grandes proporções e suscitou reacções irracionais nos dois “campos” moldados pela burguesia, o dos “alarmistas” e o dos “minimizadores”. É claro que com a vacinação anti-Covid a Big Pharma espera dividendos de uma amplitude histórica. As apostas financeiras nunca foram tão grandiosas e a guerra económica entre industriais nunca foi tão rude. Apesar disso, a esperança que a vacinação fez nascer no espírito das pessoas mais afectadas pela doença anula todo espírito crítico em relação aos diferentes tipos de vacinas presentes no mercado: seria preciso militar em favor das “mais eficazes”, as vacinas ARN americanas [RNA na sigla em inglês].
A variedade, a complexidade dos tipos de vacinas não favorece uma tomada de posição esclarecida junto aos cidadãos sem formação em biologia (e são numerosos!). E numerosos são aqueles que se tornam hostis a qualquer forma de vacinação, reforçando as fileiras dos tradicionais “antivax”. Contudo, a contribuição histórica da vacinação desde o século XIX é absolutamente indiscutível – e sempre infinitamente mais significativa em termos de benefício que os riscos incorridos (sempre presentes mas infinitesimais). Vacinas colocadas no mercados por vezes foram retiradas por causa do desequilíbrio entre benefício e risco: Em 2019 a vacina anti-papilomavirus Gardasil produzida pelo peso pesado francês Sanofi precisou tornar-se obrigatória em França pela vontade de Agnès Buzyn, então ministra da Saúde, enquanto numerosos países retiravam-na das suas recomendações devido a incertezas sobre o rácio benefício-risco (síndrome de Guillain-Barré essencialmente). Evidentemente, em cada caso os riscos são difíceis de quantificar. Mas e quanto aos efeitos secundários das vacinas de novo tipo, as vacinas de ARN, que são frequentemente seguidas de perturbações que ocorrem muito tempo após a inoculação, quando as fases 1, 2 e 3 foram validadas em menos de um ano, quando normalmente são precisos vários anos (e quando a fase 4, a fase mais longa em muito grande escala, está em curso de avaliação, sobre as próprias populações)? Acima de tudo, podemos confiar em sistemas económicos baseados no imperativo do lucro máximo e imediato para medir racionalmente quais são os riscos sanitários a longo prazo?
A posição racional consiste em reconhecer o imperativo de uma vacinação em massa, com a condição de que ela cubra rapidamente a população mundial, sempre procurando entre as vacinas aquelas que são as mais duradouras na sua eficácia colectiva, uma vez estabelecida a sua inocuidade.
As vacinas ARN constituem uma estratégia do futuro contra numerosas doenças e prioritariamente contra o cancro. Com efeito, a ideia de substituir progressivamente a quimioterapia não selectiva ou pouco selectiva (que ataca também células sãs e provocam efeitos secundários maciços) por tratamentos hiperselectivos a base de diferentes ARN (terapia génica) de um paciente para outro, é evidentemente pertinente. Mas esta via não implica senão tratamentos pontuais para cada doente atingido pelo cancro. Jamais coberturas vacinais estendidas a vários milhares de milhões de indivíduos. Neste último caso, compreende-se facilmente que o rácio benefício-risco não é avaliado do mesmo modo. Sobretudo quando se sabe que existem vacinas alternativas, recombinadas (russa e cubana) ou atenuadas (chinesa) cujo uso sobre populações muito amplas é bem conhecido desde há décadas.
Admitindo, por hipótese, a ausência de risco a longo prazo para as vacinas ARN, objectos de todas as polémicas e de todas as rejeições, numerosas outras críticas podem ser formuladas, que contudo são infelizmente passadas sob silêncio, quando sem dúvida são cruciais.
Em primeiro lugar, sobre a capacidade de cobrir a humanidade rapidamente. Na corrida de velocidade que o pessoal de saúde trava contra as variantes sucessivas da pandemia, as vacinas estado-unidenses a ARN são claramente as mais mal colocadas: Elas são muito eficazes pontualmente, mas também muito instáveis, frágeis e exigem um condicionamento em congeladores poderosos. Os produtores Pfizer e Moderna produzem em massa e a custo de produção muito fraco vacinas que venderão a Estados sobre os quais recairá o encargo de tais condicionamentos, muito custosos. Este constrangimento é suportável para todos os países do Sul? Ou agravará a dívida estrutural que eles já têm para com países imperialistas?
Admitamos agora que, por uma clemência inexplicável do FMI e do Banco Mundial, os países do Sul sejam gratuitamente dotados de congeladores e de uma logística à altura dos desafios. Resta uma crítica de peso, ainda que seja uma crítica mais difícil de popularizar. Ela está ligada ao próprio valor da “eficácia” das diferentes vacinas e parece, em primeira aproximação, algo contra-intuitivo.
Os produtores americanos das vacinas ARN concentraram-se em maximizar a sua eficácia: entre dois lotes de indivíduos bem escolhidos da população, se 95% dos que são positivos para a COVID após um período de tempo provierem do lote de controlo que recebeu um placebo, a vacina terá uma eficácia de 95%. Esta é a eficácia das vacinas ARN avaliadas na Fase 3 dos ensaios em 2020 para a estirpe inicial de Sars CoV-2 e, deste ponto de vista, nenhuma outra vacina atingiu tal valor (mesmo que a Sputnik russa tenha uma eficácia superior a 90% reconhecida pela OMS e por publicações não russas, como a Lancet) Então porque é que a OMS, que é normalmente tão escrupulosa, não exigiu inicialmente pelo menos uma eficácia superior a 50% para validar qualquer vacina candidata?
De facto, a qualidade de uma vacina deveria ser avaliada sobre a sua “durabilidade” (ou, se se quiser, a durabilidade da sua eficácia) e não sobre valores tonitroantes produzidos no instante t. Ora, deste ponto de vista, cada variante pode fazer baixar a eficácia das vacinas baseadas na estirpe viral inicial.
Por pouco que se seja darwiniano, uma “variante” é forma de multi-mutante seleccionado por uma pressão de seleção à qual ele deve adaptar-se. O vírus não cessa de mutar pontualmente e acidentalmente. As mutações aleatórias habitualmente desaparecem porque elas alteram o ciclo de vida do vírus, muito complexo, mas acontece que mutações melhoram a rapidez do ciclo de vida, aperfeiçoam a especificidade da espícula (spicule em francês, spike em inglês) para o seu receptor celular humano, permitindo ao vírus escapar mais rapidamente para o sistema imunitário do hospedeiro. Apesar de em 2020 se ter afirmado muito ingenuamente que o vírus não mutava, com o pretexto de que ele continha uma exoribonuclease (exoribonucléase) a reparar as mutações permanentemente [1], as variantes sucederam-se a seguir e diante da evidência dos factos foi preciso calar a propaganda positivista que havia permitido manter uma culpabilidade colectiva destinada a fazer aceitar as medidas de barreira (sem dúvida legítimas até um certo ponto) sob a ameaça de um retorno da epidemia.
Sem dúvida será preciso muito tempo para a ciência por o dedo sobre as causas complexas que levaram às variantes desta pandemia. Mas uma vez que existem, e uma vez que era perfeitamente possível imaginá-las desde 2020 [2], os organismos públicos (o estado russo para a Sputnik, o estado chinês para a Sinopharm e outras, o estado cubano para a Soberana e outras, a Universidade de Oxford para o Astrazeneca, o Instituto Pasteur para uma vacina recombinante que infelizmente levou a um beco sem saída, etc) favoreceram sistematicamente as chamadas vacinas "clássicas", quer recombinantes, atenuadas ou baseadas em proteínas. Porque é que o fizeram?
Afastemos de início as objecções: A China, em paralelo com o desenvolvimento das suas vacinas atenuadas, estava também a trabalhar no desenvolvimento de uma vacina de ARN (sob o impulso da Academia de Ciências Militares). Esta vacina não foi considerada prioritária para conduzir a luta e a China concentrou-se na produção de vacinas ultra-clássicas, apesar dos constrangimentos que estas implicavam: Ao contrário das vacinas ARN, que implicam a produção mecanizada de ARN a partir de um simples ficheiro, quase um "mail", descrevendo o gene viral, as vacinas atenuadas, produzidas através da destruição ou inactivação do próprio vírus, pressupõem que o vírus tenha sido cultivado em grande escala, com um consequente aparelho industrial. Isto é um constrangimento importante, que explica o elevado custo de produção e, portanto, uma escolha que não pode ser feita senão pelo sector público ou pelo Estado. A China poderia ter produzido vacinas de ARN como os EUA, mas não o fez. Por que?
A vacina atenuada, um vírus morto mas inteiro, apresenta uma vantagem considerável: em vez de provocar a produção de anticorpos dirigidos contra um único componente do vírus (suas espículas de adesão às células alvo), aquela que acumula mais mutações junto a variantes melhor adaptadas, tais como as vacinas ARN, estimula a produção de vários tipos de anticorpos que reconhecem várias moléculas diferentes do vírus (incluindo a espícula, evidentemente). Isto sem dúvida é o que a torna a mais "durável" das vacinas, uma vez que é sem dúvida menos sensível a variações limitadas às espículas (para ser mais preciso, aquela cuja diminuição da eficácia para as futuras variantes será a mais lenta).
A perda de eficácia das vacinas ARN contra as variantes 2021 é agora bem conhecida e a Pfizer foi o primeiro laboratório a propor uma terceira dose “actualizada” da sua vacina. Isto é significativo: A ideia é que uma vacina ARN dirigida especificamente contra uma estirpe do vírus pode ser o objecto de uma simples correcção numérica (a das mutações identificadas) do gene de ARN para fornecer rapidamente “actualizações” à medida das vagas epidémicas. Sente-se bem até que ponto o carácter lucrativo de uma tal opção prima sobre a Saúde Pública (que busca uma estratégia rápida e global, para acabar de uma vez por todas).
Que as vacinas atenuadas e recombinadas sejam menos “arriscadas” a longo prazo porque praticadas há décadas em muito ampla escala é uma evidência. Os defensores mais zelosos da vacina ARN anti-COVID responderão sempre que [os outros] têm medo do progresso científico. Isto é um argumento tanto irresponsável como anti-científico e o auge da sua alegada eficácia não ajudará. Não é sem razão que nem as vacinas russas nem chinesas, e muito menos as vacinas cubanas, são permitidas na Europa e nos EUA, e que o COVAX , este "Plano Marshall" pilotado pelos lobbies que enquadram a OMS, faça pressão na América Latina para que prefira a Pfizer à Sputnik ou à Sinopharm, ou organize um embargo criminoso às vacinas numa Venezuela bolivariana recalcitrante (que felizmente recebe ajuda das vacinas cubanas!)
Na realidade a eficácia quanto ao contágio das vacinas chinesas é certamente inferior à das vacinas de ARN (pelo menos à partida com a estirpe 2020), mas este não é o ponto mais importante: As vacinas chinesas apresentam uma eficácia de 70% para a prevenção das infecções, mas sobretudo de 100% para evitar as hospitalizações [3] (portanto mortes). Portanto na vacina atenuada há em simultâneo uma flexibilidade tendente a não esmagar demasiado a vaga epidémica e (assim) não abrandá-la demasiado, ou seja, para não retardar o seu declínio, uma pressão de selecção mais fraca imposta ao vírus, que é portanto menos susceptível de "forçar" as suas readaptações subsequentes (variantes) e sobretudo uma capacidade para transformar a própria epidemia numa forma benigna, tendencialmente sem hospitalização.
Muito mais do que uma falta de confiança na inocuidade a longo prazo das vacinas ARN, assunto cuja discussão certamente será longa, as vacinas de ARN constituem uma arma industrial e geopolítica para a Big Pharma: Escravização dos países do Sul (custo exorbitante e, mesmo com doação, logística impossível), obsolescência programada que permitem “actualizações” progressivamente mais caras a cada nova vaga, perigosa pressão de selecção para um vírus que não será combatido em toda a Humanidade, há muitas razões para exigir a vacinação por uma vacina russa, chinesa, cubana, etc e para boicotar as vacinas de ARN. Infelizmente, no Eldorado euro-americano do "mercado livre" e da "concorrência livre e sem distorções", cada cidadão receberá uma vacina de ARN obrigatória, sem qualquer possibilidade de escolha informada... Tornar impossível o boicote livre das vacinas de ARN, inclusive por razões políticas, significa alinhar conscientemente nas fileiras do "anti-vax" e complicar uma verdadeira campanha de Saúde Pública baseada na confiança a invés da obrigação do "Passe vacinal".