O fundamentalismo de mercado e a falha da rede eléctrica do Texas
por Prabir Purkayastha
A falha na rede do Texas provocou um impacto em milhões que ficaram sem
electricidade e sem aquecimento com temperaturas abaixo de zero durante dias.
Isto não só causou grande número de mortes e
prejuízos como também caos económico no estado. Mesmo
depois de duas semanas de apagões, a vida está muito longe do
normal pois os cidadãos têm de tratar de tubagens congeladas e
arrebentadas, o que impede o acesso das pessoas a água tratada e provoca
danos extensos às casas. Mais de 13 milhões de texanos foram
solicitados a ferver a sua água pois os serviços municipais de
abastecimento de água ficaram danificados.
Como um dos estados mais bem dotados em termos de energia tanto
fóssil como renovável o Texas deveria ter sido um dos mais
bem equipados para enfrentar um inverno tempestuoso. Que devesse ter tido um
desempenho tão mau é revelador das falhas políticas no
Texas, ao invés de uma simples história de desastre natural.
O Texas escolheu uma política de desregulamentação extrema
na década de 1990 e princípio dos anos 2000 sob a
influência maligna da Enron, o fracassado gigante energético de
Houston. Foi uma política de desregulamentação semelhante
às que a Califórnia adoptara nos anos 90 e que levou a Enron a
jogar no mercado de energia e a enormes picos nos preços spot da
electricidade, o que em 2000-01 levou ao afundamento das duas principais
empresas de distribuição eléctrica na Califórnia.
Agora, uma série de distribuidoras de electricidade no Texas
confrontam-se com ameaças de falência semelhantes.
Embora a Enron tenha sido encerrada pouco depois do desastre da
Califórnia, tendo sido apanhada em múltiplas fraudes e em
trapalhices financeiras, o seu impacto destrutivo continuou alhures. Na
Índia, ela havia introduzido a era dos Produtores Independentes de
Energia
(Independent Power Producers, IPPs).
O projecto Dabhol em Maharashtra, a nau-capitania dos IPP's, quase levou
à falência o governo de Maharashtra, pois produzia electricidade a
partir do dispendioso GNL que a Enron promovera na Índia como um
combustível "barato". Apoiada inicialmente pelo governo
Manmohan Singh, da coligação UPA, em 1996 a Enron obteve uma
garantia soberana do efémero governo Vajpayee. O governo finalmente
assumiu o controle da Dabhol, o que levou a casos de arbitragem internacional
contra a Índia por "expropriação" de activos
estrangeiros. Os governos indiano e de Maharashtra, assim como bancos indianos,
perderam milhares de milhões de dólares "compensando" a
GE e a Bechtel pelo seu capital próprio na Dabhol, pagando as garantias
de reserva a bancos estrangeiros e naturalmente os empréstimos
bancários indianos ao projecto Dabhol tornaram-se activos sem rendimento
(non-performing assets).
Porque é que a desregulamentação do sector
eléctrico do Texas levou aos apagões e ao quase colapso da rede
texana? O Texas desmantelou o sistema existente de monopólios regulados
que dirigiam as redes eléctricas integradas ali existentes
anteriormente, tal como na maior parte do mundo. Embora o Texas tenha sido o
estado dos EUA que foi mais longe nesta direcção, esta filosofia
chamada separação
(unbundling)
e acesso aberto está a ser promovida em vários
países, incluindo a Índia. A "lógica" ou
ideologia por detrás da criação de múltiplos
actores produtores, distribuidores e comercializadores de electricidade
é criar um chamado "mercado" de electricidade e
converter a electricidade numa mercadoria como qualquer outra mercadoria. Um
dos proponentes indianos desta "filosofia" defendeu a
conversão de electricidade numa mercadoria tal como o sabão.
Krugman no seu artigo de opinião do
NYT
(22 de Fevereiro) explica porque os quilowatt-hora, a medida da electricidade,
não são como qualquer outra mercadoria tais como os abacates.
Além de ser uma necessidade, a electricidade é uma mercadoria que
ao contrário dos abacates ou do sabão não pode ser
armazenada. Portanto a electricidade exige que a oferta e a procura estejam
equilibradas o tempo todo. Se isto não acontecer, a rede afundará
e é uma tarefa hercúlea pô-la outra vez a funcionar. A rede
não tem reservas que possam ser postas em serviço. Isto leva a
que o operador da rede Electric Reliability Council of Texas, ERCOT
institua rodízios de apagões
(rolling blackouts).
Isto salva a rede mas significa também que mais de 4 milhões de
famílias não tenham energia durante dias. Sem energia, algumas
das estações de bombagem de gás perdem potência, o
que por sua vez significa que novos cortes no abastecimento de gás a
centrais termoeléctricas. Isto leva a novas perdas de
produção, agravando a crise.
O Texas é um estado excêntrico e, como parte da sua ideologia de
excepcionalismo, é o único estado que se recusa a conectar
às duas maiores redes nos EUA. Ele portanto não podia extrair
reservas dos estados vizinhos a fim de impedir o colapso iminente da sua rede.
É este efeito cascata do aumento da procura, combinado com uma queda
drástica da produção, que levou não só a
apagões rotativos, que duraram dias, mas também a dezenas de
mortos, feridos e danos materiais extensos. Também afectou o
abastecimento de água, o abastecimento alimentar e serviços de
saúde críticos, incluindo a campanha em curso de
vacinação contra o Covid-19.
Por que é que as centrais termoeléctricas no Texas e o
abastecimento de gás falharam durante as tempestades de Inverno? Afinal
de contas, no norte dos EUA, Canadá, norte da Europa verificam-se
rotineiramente a temperaturas muito mais baixas no Inverno. O Texas já
havia enfrentado uma advertência quanto à sua incapacidade para
enfrentar ondas de frio em 2011 e em 2014. Peritos haviam assinalado a
necessidade de preparar para o inverno os equipamentos de
produção de electricidade e de fornecimento de gás para
enfrentar tais borrascas.
Então porque é que não foi dada atenção a
estas advertências? É aqui que entra a
desregulamentação. O argumento dos fundamentalistas do mercado
é que se construíssemos os incentivos de mercado correctos, isto
resolveria automaticamente todos os problemas. A realidade mostrou que
não é o que acontece. Como o incentivo é aumentar o
preço quando a electricidade é escassa e reduzi-lo quando
é baixa, isto proporciona um incentivo perverso a criar escassez a fim
de fazer os preços subirem. Foi isto que levou a Enron a jogar no
mercado na ruína de 2000-01 na Califórnia. No caso do Texas,
mesmo quando os preços foram aumentados pela Public Utilities Commission
(PUC) e pelo operador da rede ERCOT para o seu nível mais elevado de
US$9.000 dólares por MWh 300 a 400 vezes o preço normal
as centrais termoeléctricas simplesmente não foram capazes
de fornecer electricidade adicional. O seu equipamento havia congelado, tal
como o dos fornecedores de gás. Mesmo uma central nuclear, uma das
quatro termoeléctricas do Texas, ficou inoperacional devido a falha de
equipamento sob as baixas temperaturas.
Um cálculo racional mostraria que os mercados não podem resolver
problemas desta espécie. A menos que a regulamentação
obrigue as empresas de gás e de electricidade a construírem
medidas de segurança para se protegerem contra uma falha colectiva da
rede, cada entidade individual maximizará os seus lucros e não
investirá na prevenção de uma falha colectiva. Tal como
não construímos incentivos de mercado para melhorar a
segurança do tráfego, não podemos assegurar a fiabilidade
do fornecimento de energia através de regras do mercado. Precisamos de
regras de tráfego rígidas para a segurança das pessoas nas
auto-estradas e de policiamento para garantir o seu cumprimento. Tal como
precisamos de regras rígidas para a segurança da rede de
electricidade e a sua implementação.
Como o preço da electricidade foi fixado em US$9.000 por MWh, em
oposição aos US$22 normais por MWh, as companhias de
electricidade e os seus comercializadores obtiveram um total de US$45 mil
milhões de lucros inesperados durante os cinco dias do congelamento do
Texas. Isto incluiu os principais jogadores da Wall Street que ganharam
centenas de milhões através da cobertura
(hedging)
de contratos de electricidade no Texas.
Com o preço variável da electricidade a subir até US$9.000
por MWh, um grande número de consumidores enfrenta facturas ruinosas.
Uns 20 a 25 por cento dos consumidores do Texas têm um contrato de
preço variável com os seus fornecedores. Eles estão a ver
as suas poupanças vitais serem perdidas nalguns dias de energia
intermitente que receberam durante o quase colapso da rede do Texas. Embora o
regulador texano PUC tenha declarado que a ERCOT deixou o preço ficar no
seu máximo durante 33 horas mais do que o necessário, provocando
uma perda evitável de US$16 mil milhões para os consumidores,
esta recusou-se a dar qualquer alívio aos consumidores.
No universo alternativo desonesto em que estamos agora a entrar, houve uma
tentativa por parte dos apoiantes dos fundamentalistas do mercado de culpar a
energia verde não fiável durante a tempestade de Inverno. Como os
funcionários da ERCOT esclareceram, a causa principal dos apagões
rotativos deveu-se aos fornecedores de gás natural do Estado. Estima-se
que 45 gigawatts, em grande parte alimentados por gás natural,
interromperam os fornecimentos durante o congelamento do Texas. Isto era mais
da metade da capacidade de produção de Inverno da ERCOT.
Não que isto tenha impedido o lobby do gás e do petróleo
entre o establishment republicano do Texas de culpar o vento e a energia solar
pelos apagões. Como disse Upton Sinclair: "É difícil
conseguir que um homem compreenda alguma coisa, quando o seu salário
depende do facto da sua não compreensão". Salário,
ou, neste caso, fundos eleitorais!
A visão convencional nos media tem sido que o Texas tem uma das taxas de
electricidade mais baratas devido à desregulamentação.
Esta afirmação não é verdadeira. Enquanto 85% dos
consumidores do Texas tiveram o seu regime regulador desmantelado, 15%
continuaram com os serviços públicos tradicionais regulados.
Segundo o
Wall Street Journal,
(24/Fevereiro) os seus "consumidores residenciais desregulamentados
pagaram US$28 mil milhões mais pela sua energia desde 2004" do que
os clientes das companhias públicas tradicionais do estado.
Para os indianos, tal como em outras partes do mundo, há algo a aprender
com as primeiras derrocadas na Califórnia ou com a actual derrocada no
Texas. O establishment político indiano, seja a UPA ou o BJP-NDA, tem
seguido a escola Enron de teoria económica da energia de desmembrar a
rede integrada e defendido o "acesso aberto". Uma nova ninhada de
comercializadores de energia, que não a produzem, nem distribuem, nem
transportam energia, irá comprar e vender energia de forma mais
eficiente para nós. Este é o conto de fadas que nos estão
a vender. A realidade do mercado do Texas mostra que os consumidores pagaram
mais pela sua electricidade no mercado desregulamentado e, numa crise, foram
levados à bancarrota por contratos que não compreenderam.
William Hogan, da Harvard Kennedy School, o economista que concebeu o mercado
energético do Texas, na sua entrevista aos meios de
comunicação social sobre a confusão do Texas disse que o
mercado energético do Texas se comportou como concebido. Como escreveu
James Galbraith, o economista e professor na Universidade de Austin Texas
(Project Syndicate: 22/Fevereiro), isto de facto é verdade: o Texas
congelou intencionalmente
(by design)!
Infelizmente para os fundamentalistas do mercado no Texas, a electricidade
obedeceu às leis da natureza, não às do mercado!
14/Março/2021
Alguns artigos acerca da ENRON em resistir.info:
Zumbis, vampiros e capitalismo global
, Jorge Figueiredo
EUA: economia sem leme e a cambalear
, Paul Craig Roberts
Os banksters ficaram loucos
, Pam Martens
Os megaprojectos de gasoduto no Brasil e na Bolívia
, Micheline Ladouceur
Um grande especialista revela os segredos dos centros bancários offshore
, Michael Hudson
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2021/0314_pd/market-fundamentalism-and-texas-grid-failure
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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